domingo, 18 de setembro de 2016

O que setembro nos ensina - *Luiz Sérgio Henriques

- O Estado de S. Paulo

• Só uma esquerda atrasada se pode valer de uma permanente estratégia de tensão...

Setembro acaba de nos trazer à memória dois acontecimentos espantosos e relativamente recentes, mas já históricos, cuja relação, direta ou indireta, é difícil fazer, a não ser que usemos cautelas acima das convencionais. À primeira vista, de fato, não há muita coisa em comum entre o cruel atentado às torres gêmeas de Nova York, em 2001, e a igualmente violenta deposição do presidente chileno Salvador Allende, em 1973, ainda que se possa argumentar que, cada qual a seu modo, ambas as tragédias deixaram fundas marcas nos contemporâneos e contribuíram para reorientar decisivamente modos de ver e de viver os fatos da política e da cultura.

Acontecimento global, o 11 de setembro de 2001 logo pareceu ter inaugurado o século 21, alterando radicalmente a “estrutura do mundo”. O adversário do Ocidente democrático não era mais o conjunto diversificado dos comunismos no poder, mas uma versão irracional e extrema do islamismo. O marxismo como ideologia de Estado definhava, enquanto a nova confrontação passava a ser entendida, por parte dos conservadores ocidentais, como irreconciliável “choque de civilizações”.

Dispensável dizer que uma direção política como a de George W. Bush não perderia a ocasião de desatar todas as fúrias, deixando de lado a imensa onda de solidariedade formada em favor de seu país no momento da agressão sofrida. Seguiram-se, em série mais ou menos lógica, intervenções unilaterais, guerras sectárias nos países sob intervenção e vagas migratórias que hoje alimentam o espectro horripilante da extrema direita na Europa e nos Estados Unidos, com evidente ameaça às liberdades civis e aos direitos sociais que dão significação à ideia de Ocidente.

O outro 11 de setembro, mais recuado no tempo, vestiu-se com o léxico obviamente mais racional do marxismo e suas formas de entender a História, não obstante o histórico sectário de tantos marxistas. Tratava-se, no bravo e pequeno Chile, de fazer uma transição de novo tipo para o socialismo, mantendo vivas as instituições básicas da democracia, como, entre outras, o Parlamento e as eleições regulares. Bem verdade, repetimos, que nem todos os marxistas, no Chile e fora dele, falavam a língua mais razoável: estamos na América Latina e, aqui, o paradigma da revolução regeneradora, hostil à “via pacífica”, organizava, e organiza, teoria e prática de parte considerável da esquerda, dos adeptos da revolução cubana até o bolivarianismo dos nossos dias.

O que já está registrado na História é que a reação da direita chilena – apoiada por aberta ação norte-americana de tipo imperial, que só seria revertida no governo Carter, com sua agenda dos direitos humanos – foi especialmente violenta, matando Allende e cancelando a democracia por quase duas décadas. A tragédia foi de tal ordem que terminou por abrir dolorosa reflexão entre os comunistas fora do poder, como o italiano Enrico Berlinguer, então à frente do maior Partido Comunista do Ocidente.

Berlinguer, comprovando que a esquerda clássica, diferentemente do deserto atual, soube produzir políticos capazes de falar a todos, e não só à própria parte, logo intuiu que a divisão radical das sociedades em dois campos inimigos é sempre a antessala da catástrofe. Antes de significar um bom encaminhamento de qualquer estratégia de reformas, tal divisão pressagia a derrota das forças reformistas e, levada às últimas consequências, antecede a ruína comum de partidos e forças em luta, com a explosão mais ou menos incontrolada da violência e a inviabilização da convivência civil.

Se isso fizer sentido, só uma esquerda atrasada e irresponsável, carente de ideias convincentes de mudança, pode se valer de uma permanente estratégia de tensão, adotando políticas de terra arrasada quando na oposição e de degradação das instituições quando no governo, sob o pretexto de que elas são “burguesas” e, por isso, não passam de instrumentos da dominação de classe. Por que, então, respeitar a liberdade de imprensa em sua plenitude, com a devida e natural regulação democrática? Por que ter preocupação constante com a independência dos Poderes e seu bom funcionamento, se se trata – nessa visão primitiva e “rebelde” – de herança “liberal” a que devemos renunciar?

Ocioso acusar dirigentes como Allende ou Berlinguer por não terem, afinal, “construído o socialismo” ou terem sido ingenuamente derrotados. Uma acusação que denota “finalismo”, a saber, a ideia de que só o que conta é guiar povos e nações até o suposto estágio final da História – o socialismo –, em que desapareceriam mercado e Estado, conflito social e política. É evidente que não o fizeram, o que não lhes diminui minimamente o papel positivo nas lutas de suas respectivas sociedades em momentos históricos bem determinados.

Ambos os estadistas, no interior do socialismo e do comunismo clássico, ou da parte “herética” dessas correntes, colocaram no centro de suas trajetórias o que se costuma chamar de questão democrática. Por definição, quem adota tal posição está aberto ao diálogo com outras tradições, até muito afastadas, convergindo todas elas para um irrestrito compromisso de defesa e aprofundamento do Estado Democrático de Direito e dos mecanismos de mudança nele inscritos.

De resto, não ter percebido essa questão em sua radicalidade explica muito das dificuldades atuais da esquerda brasileira e latino-americana em sua tosca vertente bolivariana, uma esquerda que na primeira década do século se teve a si mesma em alta e indevida consideração – juízo, infelizmente, corroborado por intelectuais e forças políticas dos países do “centro” do capitalismo. Uma falta de percepção ainda mais inexplicável se admitirmos que “regras e valores da democracia”, na periferia ou no centro, no norte ou no sul do planeta, estão hoje sob ameaça e devem ser defendidos a todo custo, por terem óbvia dimensão universal.
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*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘obras’ de Gramsci no Brasil

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