quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Que República! - Nelson Paes Leme

- O Globo

• Não há previsão constitucional de ‘destaque’ na votação do artigo regulador do impeachment

O Senado do Brasil, presidido excepcionalmente pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, na culminância do procedimento de impeachment da presidente Dilma Rousseff, para surpresa geral do mundo acadêmico, acaba de inventar a mais nova jabuticaba. Daqui para a frente tudo vai ser diferente: o poder constituído poderá fatiar, ao seu bel-prazer, o texto constitucional elaborado pelo poder constituinte. E agora? Agora, o próprio Supremo Tribunal Federal, guardião que é da Constituição brasileira, vai dizer que não pode, claro! Não se pode fatiar um artigo da Carta Magna em votação parlamentar unicameral, com base numa lei por ela recepcionada e por ela até aperfeiçoada. Muito menos por manobra regimental sub-reptícia, desprezando o rito estabelecido pelo próprio STF.

Tanto a Lei do Impeachment de 1950 quanto o regimento do Senado são normas subalternas, na hierarquia constitucional das normas. Por mais importante que seja a lei ou a norma para o processo de impedimento da chefe do Executivo, nunca teria a prerrogativa de modificar o texto da Constituição, alterando a intenção do constituinte originário. Nem o Senado nem a Câmara têm essa prerrogativa sem quorum qualificado e rito específico exigido pela própria Lei Maior. E, assim mesmo, através de PEC previamente aprovada em sessão específica para tal fim, se pétrea não for a cláusula a ser alterada.

Pois o artigo 52 da Constituição e seu parágrafo único dizem textual e claramente que a presidente da República perdeu o mandato e os direitos políticos por oito anos na primeira (e única permitida) votação havida, por 61 votos favoráveis a 20 votos contrários, vencidas todas as etapas da discussão e assegurado o mais amplo contraditório. Ponto final. Numa só fornada, perdeu mandato e direitos políticos, porque assim determina escancaradamente a Constituição da República.

Portanto, a parte fatiada é simplesmente nula de pleno direito. Nunca existiu porque não podia nem ser colocada em votação. Não há previsão constitucional de “destaque” na votação do artigo regulador do impeachment. Nada, assim, a temer. Nada, assim, a comemorar. Nada a discutir ou rediscutir também. Nada sequer a anular porque nula já é de berço essa segunda votação. Exceto, naturalmente, se a nova jabuticaba vingar, ou seja: o poder constituído poderá, sim, derrogar o que o poder constituinte dispôs desde 1988, quando foi promulgada a Constituição e, por consequência, mexer no texto do seu artigo 52 e respectivo parágrafo único, claríssimo, que assim dispõe:

“Compete privativamente ao Senado Federal:

I — processar e julgar o presidente e o vice-presidente da República nos crimes de responsabilidade, bem como os ministros de Estado e os comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica nos crimes da mesma natureza conexos com aqueles; (redação dada pela Emenda Constitucional nº 23, de 02/09/99).

Parágrafo único. Nos casos previstos nos incisos I e II, funcionará como presidente o do Supremo Tribunal Federal, limitando-se a condenação, que somente será proferida por dois terços dos votos do Senado Federal, à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis”.

As lições de Teoria Geral do Estado e Direito Constitucional, matérias elementares dos cursos jurídicos e sociais que todos os ministros do Supremo estudaram no primeiro ano letivo de seus respectivos bacharelados, devem barrar essa nova e exótica jabuticaba na antessala do meirinho e do porteiro dos auditórios do Supremo Tribunal Federal. Nem ao Pleno deveria ter acesso essa completa, rematada e inacreditável barbaridade constitucional. O ministro Gilmar Mendes, diplomaticamente, já a qualificou de “bizarra”, para dizer o mínimo. O poder constituinte, como o atributivo está a designar com clareza semântica inseparável e inarredável, constitui o poder constituído, pleonasticamente, e não o inverso. E o Legislativo legisla sob a égide do que o constituinte originário assentou em assembleia específica com esse fim, eleita pelo soberano: o povo brasileiro, há exatos 30 anos. A única exceção é quando o Legislativo exerce o seu poder constituinte derivado como, de resto, o fez em 1999, no caput do artigo 52.

Pois está aí a nossa sacrossanta e intangível Carta Magna, desde 1988, ordenando leis, decretos, portarias, regimentos, recursos, decisões, contratos e tudo o mais que se possa chamar de instrumento de Direito positivo subalterno. Tudo o que a ela, Carta Maior, se contrapõe ou ofende, rapidamente é corrigido nas próprias instâncias inferiores e, em último grau, pelo Supremo Tribunal Federal, de ofício, como é o caso da novidade do jabuticabal legiferante dessa nossa Terra de Vera Cruz, lançada no ar ao apagar das luzes do mais longo, traumático e doloroso processo de impedimento de um presidente da República. Mas o que é realmente estarrecedor e absurdo ao se criar um destaque em texto constitucional é o fato de ter se dado essa aberração por sugestão do presidente da Casa, ele mesmo um bacharel em Direito e, pior, ter sido chancelada e colocada em votação por ninguém menos que um emérito professor de Direito e, nada mais, nada menos, do que presidente da mais alta corte judiciária da República Federativa do Brasil. E que República!

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Nelson Paes Leme é cientista político

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