segunda-feira, 10 de outubro de 2016

O preço da PEC - Marcos Nobre

- Valor Econômico

• A PEC 241 faz o sistema político abdicar de seu poder

O nome oficial é Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do Novo Regime Fiscal e recebeu o número 241. Fixa de antemão como limite das despesas públicas para um ano o gasto realizado no ano anterior, corrigido pela inflação. Tem duração prevista de vinte anos.

A Constituição de 1988 é útil sempre que diz o que se quer que ela diga e totalmente despropositada quando vai contra o que se quer que ela diga. Quando se trata de defender o impeachment que alçou Temer ao poder, agarra-se com unhas e dentes ao texto constitucional. Quando se trata de defender a PEC 241, a Constituição é a principal fonte da atual ruína do país, já que "não caberia no PIB". Assim como existiria um "PIB potencial" (sobre o qual nem economistas de mesma confissão teórica se entendem), existiria também uma espécie de "Constituição potencial", aquela justamente que caberia no PIB.

Esses são o discurso, o metro e o padrão que sustentam a PEC 241. Depois do trauma da ruína econômica dos últimos dois anos, a PEC põe sob suspeição a capacidade do sistema político de dirigir o país. Suspeita que o Congresso não é capaz de elaborar um orçamento realista a cada ano, conforme as circunstâncias e as informações disponíveis. Considera que a democracia não é capaz de garantir a previsibilidade e a estabilidade que seria de se esperar.

A PEC 241 é a medida mais radical da série de jeitinhos para fazer a Constituição caber como se quer que caiba na realidade. O mecanismo mais vistoso dessa série é a Desvinculação de Receitas da União (DRU), que permite que o governo deixe de seguir obrigações constitucionais para uma porcentagem do orçamento. Com nomes diferentes, sobrevive desde sua criação, em 1993. Não por acaso, a PEC 241 vem acoplada a uma extensão da DRU até 2029. Tudo isso não quer dizer, evidentemente, que não existam limites para o orçamento ou para a expansão do PIB. Só pretende lembrar que os tais limites comportam uma margem considerável de manobra, que as limitações são estabelecidas, em última instância, pela política, e não por uma pretensa objetividade técnica e científica.

O que mais espanta na PEC 241 é que, com ela, o sistema político está abrindo mão de arbitrar essas margens de manobra que, no final das contas, são a sua própria razão de ser, o fundamento de seu poder. O sistema político só conseguirá retomar essa sua posição de poder mais fundamental se conseguir em algum momento três quintos dos votos na Câmara e no Senado, em dois turnos de votação. Só não é mais difícil que produzir um impeachment de presidente. A PEC 241 surfa na onda da antipolítica de uma maneira peculiar: reforçando a suspeição geral, retira do sistema político parte substantiva do seu domínio de atuação.

Sabe-se que a política só vai de fato dar com a cabeça no teto da PEC lá por 2019 ou 2020, quando o atual governo já não mais será. Ainda assim, há que tentar explicar essa abdicação do sistema político da parte mais substancial de seu poder, para além do imediatismo de ganhar tempo, livrando a própria barra por três ou quatro anos. Porque se trata se uma abdicação semelhante às intervenções na zona do Euro a partir de 2011, quando a chamada troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu, Fundo Monetário Internacional) chegou a designar diretamente primeiros-ministros em países como Itália e Grécia.

Desde Junho de 2013 (para a grande massa da população), ou do final da eleição de 2014 (para a elite econômica), ficou patente que os partidos tinham se desconectado de suas bases sociais. O caso do PT parece mais óbvio e direto. Permanentemente ameaçado de ser retirado do jogo desde 2005 pela pecha de corrupção, viu estraçalhada sua base no momento em que Dilma Rousseff se decidiu, logo após a eleição, pela política de ajuste e pelo nome de Joaquim Levy para a Fazenda.

O caso do PMDB é mais complicado. Sua função no sistema político é liderar o grande bloco de venda de apoio parlamentar que sustenta qualquer governo eleito. Esse grande bloco tem sua base de sustentação no empresariado, na finança, no agronegócio. Do ponto de vista dessa elite econômica, o PMDB está no governo, entre outras coisas, para impedir tentativas de encaixar planos econômicos a machadadas na realidade, como se deu com o choque tecnocrático do primeiro mandato de Dilma Rousseff. Acontece que o PMDB descumpriu esse contrato com sua base.

Em um sistema pemedebizado, o PMDB ele mesmo nunca precisa assumir diretamente o poder. Não deve fazê-lo, aliás. Seu lema é mandar sem ter o ônus de liderar. Basta ver que o governo Temer é uma confusão permanente porque não sabe liderar. Precisa chamar Henrique Meirelles (e toda a sua rede) e o PSDB (com os quadros que ainda lhe são fiéis) para dar algum rumo e direção ao governo. Os famosos recuos dos recuos dos recuos, tão próprios do governo Temer, são expressão de um partido acostumado a terceirizar a liderança e fazê-la vergar sob o peso de sua base de apoio parlamentar quando interessa.

Acontece que a quebra de contrato com sua base de sustentação na elite econômica ao longo do primeiro mandato de Dilma Rousseff foi cobrada no segundo. Na fantasia da comparação com o governo pós-impeachment de Itamar Franco, muito se fala em qual seria o Plano Real de Temer. A resposta é simples: o Plano Real de Temer é alcançar a reconexão do pemedebismo do sistema político com sua base de sustentação. Só que essa base precificou a confiança. O primeiro passo foi a tomada direta do poder pelo impeachment, o compromisso de consertar a bagunça que não conseguiu evitar. O segundo passo foi a abdicação desse mesmo poder, representada pela PEC 241.

Não que tenha desagradado a Temer tomar o poder, evidentemente. O problema é que mando e liderança agora se confundiram, já não dá mais para fingir que é governo e oposição ao mesmo tempo, especialidade imorredoura do PMDB. Somada ao preço da abdicação representada pela PEC 241, a reconexão com sua base de sustentação pode acabar custando ao PMDB nada menos do que a liderança do pemedebismo do sistema político.
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Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap.

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