segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Percepção e realidade - Denis Lerrer Rosenfield *

- O Estado de S. Paulo

• Nas redes sociais vigora a narrativa das ‘perdas socais’ e o governo não consegue contrapor-se

A imagem da herança recebida pelo governo Temer é de terra arrasada. Eis uma descrição precisa da realidade. Os pilares da economia construídos pelo governo Fernando Henrique e preservados no primeiro governo Lula foram destruídos. Não há Estado que possa sustentar-se sem fundamentos econômicos sólidos.

O PIB acumula queda de 7,5% em três anos, a inflação fugiu do controle na era petista, a responsabilidade fiscal foi literalmente para o espaço, estatais, como a Petrobrás, foram vítimas de saqueio, o Estado foi partidariamente apropriado e a corrupção tornou-se sistêmica e ideológica. É como se tudo valesse para que a hegemonia petista pudesse ser conservada.


O desemprego atinge 12 milhões de pessoas e somando a subocupação, segundo o IBGE, o total passa dos 16 milhões. A renda familiar foi drasticamente reduzida. A ascensão social não foi apenas interrompida, o contingente populacional que ascendeu está voltando às classes D e E. Uma catástrofe.

Quem conheceu a mobilidade social, para cima, vive agora dramaticamente o pesadelo do sonho frustrado. Expectativas não foram concretizadas. Quem conheceu uma situação melhor vê-se nas agruras da redução de renda. Imóveis e automóveis são devolvidos, os planos de saúde foram abandonados e a escola privada não é mais frequentada. As famílias vivem uma péssima realidade.

Enquanto isso, o petismo, apesar de ter sofrido uma derrota clamorosa nas eleições municipais, tornando-se um partido médio e sem expectativas futuras imediatas, debatendo-se pela própria sobrevivência, continua vivo no imaginário social. Para os convencidos pela narrativa petista, é como se o novo governo representasse o atraso e a perda dos “direitos sociais”. Como se o atraso não fosse a devastação econômica e a perda de direitos sociais, como o desemprego, não fosse já tangível.

Nas redes sociais, contudo, continua a vigorar essa narrativa de “perda social”, “redução dos direitos”, sem que o novo governo tenha conseguido contrapor-se, até agora, a essa percepção. Os instrumentos do imaginário petista, particularmente presentes entre certos formadores da opinião pública, como jornalistas, professores, intelectuais, acadêmicos e artistas, produziram resultados eficazes.

O governo Temer conseguiu uma significativa vitória na Câmara dos Deputados, fazendo aprovar com folga a PEC 241. Porém não obteve o mesmo sucesso no debate público das redes sociais, em que o PT conseguiu impor a sua narrativa. A “PEC da vida” mesmo do Estado tornou-se, segundo essa percepção ideológica, a “PEC da morte”.

Não haverá redução alguma, por exemplo, nas áreas da saúde e educação, cujos orçamentos continuarão a ser corrigidos pela inflação do ano anterior. Ademais, vinculações orçamentárias não são garantia de qualidade dos serviços, nos quais, muitas vezes, a corrupção continua grassando. Há certo contentamento burocrático na garantia de um orçamento fixo, pois nenhum esforço de gestão e de melhor aproveitamento dos recursos é exigido.

Eis a realidade, mas não necessariamente a percepção pública a acompanha, sobretudo a imperante nas redes sociais. Nestas, a narrativa petista sobre a PEC 241 é hegemônica. Em linhas gerais, a tese difundida é a seguinte: 1) a PEC retira direitos dos brasileiros, reduz investimentos em saúde e educação; 2) ela é a prova dos interesses escusos dos que promoveram o “golpe”; 3) ela prova que foi um “golpe”; 4) ela prova que o Brasil está dividido entre os que querem o bem do povo e os que, literalmente, querem o mal do povo.

Simples assim e falso assim!

Nesse ambiente, setores importantes do funcionalismo público procuram fazer valer seus privilégios, que são nada mais que direitos exclusivos, valem apenas para poucos, os que conseguem impor os seus interesses. As corporações estatais acostumaram-se, nos últimos anos, a sobrepor seus privilégios aos direitos dos demais cidadãos, como se existissem subclasses da cidadania.

Claro que tal postura se apresenta como politicamente correta, seja ancorando-se no tal imaginário petista, seja em pretensos argumentos jurídicos de que o Executivo estaria invadindo competência dos outros Poderes, como os apresentados pelo Ministério Público. São grupos que se pretendem acima do bem coletivo, exigem dos outros sacrifícios e eles não fazem nenhum.

Não é possível a nenhum Estado ou família sobreviver gastando mais do que arrecada ou ganha. Um dia a conta chega. E pode chegar, nas empresas, sob a forma de falência; nas famílias, sob a forma de inadimplência; e no Estado, não honrando salários, ou a previdência, além de apresentar serviços públicos de má qualidade.

Certamente um dos maiores desafios do governo Temer consiste em quebrar essa lógica das corporações, públicas e privadas, que se acostumaram a tratar a coisa pública como se fosse deles, privada.

A PEC do Teto dos gastos públicos vai na direção correta, porém faltam medidas completares, como a reforma da Previdência, igualando, por exemplo, os funcionários públicos aos trabalhadores privados e estabelecendo a igualdade de gênero numa idade mínima para a aposentadoria, que leve em conta os avanços da longevidade dos brasileiros nas últimas décadas.

Cumpre igualmente levar a cabo uma modernização da legislação trabalhista que seja condizente com o mundo digital e profundamente transformado do século 21. Nossa legislação tem sua inspiração no final do século 19 e início do século 20, tal como foi influenciada pelo positivismo e, depois, pela concepção das corporações dos anos 30 do século passado.

Tudo isso custa muitos esforços, mudança de percepções e mentalidades, exigindo sacrifícios que devem ser compartilhados por todos. Nenhuma corporação ou grupo social pode considerar-se acima dos interesses públicos.
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* Professor de filosofia na UFRGS.

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