quinta-feira, 27 de outubro de 2016

'Sem as reformas, vamos caminhar para uma crise fatal', afirma Ricupero

• Para o ex-embaixador e ex-ministro da Fazenda e do Meio Ambiente, o atual sistema político só sobreviverá se for capaz de realizar as mudanças de que o País precisa

José Fucs, especial para o Estado de S. Paulo

O diplomata e economista Rubens Ricupero vê com ceticismo a perspectiva de o Brasil dar uma guinada radical no governo Temer. Ex-embaixador em Washington e ex-ministro da Fazenda e do Meio Ambiente no governo de Itamar Franco, ele diz que não é "realista" acreditar na promoção de uma reforma sistêmica na atual conjuntura. "Prefiro adotar uma atitude realista sobre o que é viável, levando em conta não o planeta ideal, mas o planeta Brasil nesse momento", afirma.

Segundo Ricupero, o cenário hoje está muito mais complicado do que na época do impeachment de Collor, em 1992. Primeiro, por causa da Operação Lava Jato; segundo, pela incerteza relacionada ao processo que corre no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), para apurar denúncias relacionadas ao financiamento irregular da chapa Dilma-Temer nas eleições de 2014; e terceiro, porque o País está muito mais dividido do que naquela época. Nesta entrevista, realizada para a série "A reconstrução do Brasil", lançada pelo Estado para discutir os grandes desafios do País pós-impeachment, Ricupero diz também que os sinais de esgotamento do atual sistema político são tão generalizados que ele só sobreviverá se demonstrar que é capaz de realizar as mudanças de que o País precisa. "Sem as reformas, cedo ou tarde, a gente vai caminhar para uma crise fatal."

• Estado - O impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff criou uma oportunidade para o Brasil discutir as suas mazelas e mudar de rumo. Como o senhor vê essa perspectiva?
Rubens Ricupero - Olhando o panorama que nos cerca, eu tenho dúvidas de que isso possa acontecer. Se as reformas não avançaram nem com o Fernando Henrique em oito anos, com dois mandatos, nem com o Lula, em mais oito anos, com dois mandatos, por que pensar que seria possível levar avante grandes reformas, num governo de dois anos e quatro meses, que é apenas para completar o mandato? Eu diria que só a gravidade extrema da crise poderá nos conduzir por esse caminho. Realmente, há um sentimento de que nós estamos com uma crise extrraordinariamente grave. Às vezes, a premência da crise nos obriga a fazer grandes reformas. Mas até que ponto existe na sociedade brasileira, sobretudo naqueles que têm o poder de propor, discutir e votar as reformas, a consciência dessa premência e dessa gravidade? Ainda que a gente atribua ao governo Temer apenas a tarefa de evitar que a economia e a situação política continuem se deteriorando e de restaurar o mínimo de normalidade para chegar até o fim o mandato, que é uma proposta mais modesta, não será fácil. No fundo, o desafio de qualquer vice-presidente que se vê galgado à posição principal - foi o do Sarney, o do Itamar e agora do Temer - é como completar o mandato com um mínimo de qualidade e de eficiência.

• Em comparação com o quadro existente na época do impeachment de Collor, em 1992, como o senhor analisa o atual cenário do País?
Em relação ao impeachment do Collor, hoje temos três elementos bem piores do que naquela época: o primeiro é a Operação Lava Jato; o segundo, a incerteza em relação à decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sobre o financiamento da campanha de 2014; e o terceiro, o fato de que, desta vez, o País está muito mais dividido e a oposição, muito mais aguerrida. O Itamar não teve oposição nenhuma. Quando o Collor caiu, como disse o Ulysses Guimarães, foi um massacre. O Collor não tinha mais ninguém do lado dele. Oficialmente, o Itamar não conseguiu persuadir o PT a entrar num governo de união nacional, mas na prática o PT estava no governo. Eu sei, porque, além de ministro da Fazenda, fui ministro do Meio Ambiente e da Amazônia do Itamar e a diretoria inteira do Ibama, que é o órgão mais importante do ministério, estava praticamente entregue ao PT. Era uma participação escondida, como o PT gosta de fazer. O PT não queria assumir o ônus de participar do governo, mas tinha muitos militantes que foram nomeados pelo Itamar, conscientemente. Quando me queixava ao Itamar sobre eles, não porque fossem do PT, mas porque passavam o dia inteiro em reuniões, ele dizia que precisava tomar cuidado, porque queria que eles participassem de alguma maneira do governo. Hoje, a situação é muito diferente. Só para governar no dia a dia, sem querer fazer grandes cavalarias, como se dizia antigamente, já vai ser um desafio enorme. Esses pontos precisam ser colocados, para avaliar se é razoável, num momento como esse, com tantos problemas e tantas incertezas, imaginar que o País vai implementar reformas profundas. Eu não pensaria numa grande reforma sistêmica, porque me parece totalmente irrealista. Prefiro uma atitude realista sobre o que é viável, levando em conta não o planeta ideal, mas o planeta Brasil nesse momento. Se você colocar o sarrafo muito alto, nem o Thiago Braz, que ganhou a medalha de ouro na Olimpíada no salto com vara, conseguirá superá-lo.

• Em sua opinião, não há nenhum ponto mais favorável hoje do que na época do Itamar?
Só vejo um elemento mais favorável hoje: é que a crise se torne tão dura, tão difícil, que ela atue como um catalizador. Em relação à economia, há outro ponto positivo. Ao contrário do Itamar, o Temer terminou a fase de interinidade já com uma equipe econômica de primeira qualidade montada. O Itamar demorou oito ou nove meses para encontrar no Fernando Henrique a condição que o Temer passou a ter com a nomeração da atual equipe econômica desde o primeiro momento. O Itamar ficou interino de 2 de outubro até final de dezembro de 1992. O primeiro ministro da Fazenda que ele convidou fui eu, que era embaixador em Washington, mas eu não aceitei. Ele acabou acertando com o Gustavo Krauze e depois vieram o Paulo Haddad e o Eliseu Resende. Todos duraram pouco tempo, questão de semanas e meses. O Fernando Henrique foi o quarto ministro da Fazenda e só entrou no governo em fins de junho de 1993. Aí, é que a coisa começou a entrar nos eixos, com a equipe que o Fernando Henrique levou. Foram oito meses, quase uma gestação, até o Itamar ter o que o Temer já tem, com uma equipe de altíssima qualidade, desde o princípio. Agora, uma grande equipe não basta. O êxito do Fernando Henrique dependeu muito de ele ter conseguido "vender" ao Congresso o que ele queria. Vamos ver se o Temer vai conseguir isso também. É preciso testar na realidade qual vai ser a resposta do Congresso.

• Em sua opinião, que reformas seriam realistas no momento?
O principal é aprovar as duas grandes reformas que já começaram a ser discutidas pelo Congresso. Uma é o teto para os gastos e a outra, como condição para que isso seja possível, é a reforma da Previdência. A maior pressão para colocar um teto para os gastos vem dos aumentos automáticos dos benefícios da Previdência com base no salário mínimo. Mas a experiência parece mostrar que, nos países em que isso foi feito, a reforma da Previdência foi implementada em etapas. Em geral, vai avançando um passo aqui, outro ali. Acho difícil imaginar que, desta vez, será diferente. Se fosse para escrever um script de qual seria o País ideal, teria de fazer muitas outras coisas. Além da reforma tributária, que é uma das mais desafiadoras, teria de acabar com essa legislação trabalhista, que vem desde a época do Vargas, essa legislação corporativista, essa legislação de sindicatos, não só de trabalhadores, mas de patrões, que dependem do imposto sindical para sobreviver. Você vê essas organizações patronais em que os sujeitos ficam como dirigente durante trinta anos, como no caso da Federação do Comércio de São Paulo. Se começar a ver essas coisas todas teria de reconstruir o País desde Adão e Eva. É viável? Não é. Quem sabe, com o tempo, a gente possa pouco a pouco ir resolvendo essas coisas. Mas não é fácil.

• Em relação à reforma política, qual é a sua posição?
É difícil empurrar a reforma política guela abaixo do pessoal que tem interesse direto nisso. A iniciativa tem de ser do próprio Congresso. No Senado, já estão tentando aprovar uma proposta que prevê uma cláusula de barreira para os partidos. Acredito que uma reforma política terá de tratar disso e mexer também no financiamento de campanha, definir se haverá ou não de coalizões em eleições proporcionais, com aquele sistema de quociente eleitoral. Tem uma meia dúzia de coisas que têm de ser equacionadas. Hoje, é um absurdo. Além dos 35 partidos já em atividade, há outros 125 esperando a legalização na Justiça Eleitoral. Fazer partido no Brasil hoje é como fundar Igreja Evangélica. Num caso há o dízimo; no outro, o fundo eleitoral. Infelizmente, a gente caiu nisso. Em cada uma das grandes reformas, tem de privilegiar o que é realmente fundamental, porque não creio que, de outra forma, seja possível aprová-las.

• Muita gente diz que a Constituição de 1988 está na raiz da crise. O senhor concorda com isso?
A Constituição de 1988 tem muita responsabilidade. Hoje em dia, ela é meio idealizada, por causa da frase famosa do Ulysses Guimarães, que a chamou de "Constituição Cidadã". De fato, é uma Constituição que atendeu muito aos anseios não só de liberdade, mas de participação, de inclusão social. Como ela veio depois de um período de repressão, não só da liberdade, mas social, salarial, a tendência foi o pêndulo ir para o outro lado. Foram concedidos muito direitos, dos quais ninguém discorda, mas que são difíceis de financiar. Na época, o Sarney chegou a ir à TV antes de a Constituição ser aprovada e disse que, como ela estava, iria tornar o País ingovernável. Quase sempre, quando ela é criticada, é mais no capítulo social, por ter criado muitos gastos sem custeio e também por ter amarrado quase toda a receita. Tem porcentagem para isso, para aquilo, fundo de participação dos estados, fundo de participação dos municípios, criou um país muito rígido. Até hoje, o ministro da Fazenda tem menos de 10% de possibilidade de mexer no Orçamento, porque tudo está amarrado. Uma boa reforma seria desamarrar, se possível tudo. Num país sério, como a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, não há despesas obrigatórias. Na hora em que se elabora o Orçamento é que o governo fixa as prioridades, de acordo as ideias de quem venceu a eleição. O problema da rigidez da Constituição é que ela se destina a proteger um determinado argumento, como ter de gastar em educação e saúde. Ao colocar isso na Constituição, independentemente do mérito desses argumentos, você o faz de acordo com uma maioria ocasional. Amanhã ou depois, a maioria pode mudar e ela pode dizer que a prioridade do Brasil não será mais a saúde ou a educação, mas dar de comer a quem tem fome. Isso pode acontecer. Só que, agora, você não poderá mudar, porque a maioria ocasional tornou a coisa válida para sempre. Portanto, uma boa coisa para se fazer na Constituição é desamarrar todas essas amarras. Dada a incerteza, é melhor corrigir o que é mais clamoroso do que tentar fazer uma nova Constituição, que provavelmente seria pior do que essa.

• A que o senhor atribui esse resultado tão diferente das expectativas iniciais?
Quando a Constituinte estava começando, eu assisti uma cerimônia na Embaixada da França, como assistente especial do Sarney, em que o Ulysses Guimarães, que era chamado de tríplice presidente, por ser presidente do PMDB, da Câmara Federal e da Assembleia Constituinte, foi condecorado com a Légion d'honneur. No discurso para agradecer a condecoração, ele disse que nós iríamos fazer uma Constituição de acordo com o ideal de Napoleão Bonaparte, que fosse breve e vaga, mas acabou sendo longa e detalhada. O processo de elaboração da Constituição foi muito complicado. Havia se nomeado aquela comissão que era presidida pelo Afonso Arinos, que o próprio Tancredo tinha idealizado. Essa comissão preparou um anteprojeto que tinha como espírito instaurar um regime parlamentarista. A própria Constituinte foi no rumo do regime parlamentar quase até o fim, mas o presidencialismo acabou aprovado. O Parlamento ficou com muitos poderes, mas sem responsabilidades. O que acabou levando a essa virada foi o mandato do Sarney. O mandato do Sarney, de seis anos, era o fixado pelo Geisel no Pacote de Abril. O Sarney aceitava cinco, mas o grupo que queria o Parlamentarismo, que acabou fundando o PSDB em São Paulo, queria quatro anos. Tiveram uma reunião no Planalto, mas não houve acordo. A coisa foi para a disputa em plenário e o Sarney ganhou, em fevereiro de 1988. No final, não ficou nem carne, nem peixe. Como a Constituição saiu muito rígida, já nasceu com o impeachment. Todos os presidentes que vieram depois dela ou sofreram ameaça de impeachment ou sofreram o impeachment, menos o Itamar, porque não deu tempo. Em 28 anos, esse sistema político já teve dois presidentes afastados por impeachment. Os sinais de esgotamento são tão generalizados que o sistema só sobreviverá se demonstrar que é capaz de uma autoreforma, que é o conjunto dessas mudanças. Sem as reformas, cedo ou tarde, vamos caminhar para uma crise fatal.

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