quinta-feira, 17 de novembro de 2016

A bandeira da desordem - Luiz Carlos Azedo

- Correio Braziliense

• Se as regras do jogo não são respeitadas e a desordem se instala, a bandeira da ordem surge nas mãos de quem tem mais força para empunhá-la

Um grupo de manifestantes de extrema-direita, que defende a instauração de uma nova ditadura militar, invadiu ontem o plenário da Câmara e o manteve ocupado por várias horas, depois de quebrar a porta de vidro do plenário e enfrentar a Polícia Legislativa. Na véspera, dia da Proclamação da República, o grupo havia feito um protesto no gramado em frente ao Congresso. A ação coincidiu com a tentativa de nova invasão da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, por policiais revoltados com o pacote fiscal do governador Luiz Fernando Pezão (PMDB), que somente foi contida pela ação do batalhão de choque da Polícia Militar fluminense.

Na Câmara, cerca de 50 manifestantes subiram à Mesa e interromperam a sessão do plenário. Gritavam palavras de ordem contra a corrupção e a favor de uma intervenção militar no país, como “general aqui”. Cantaram o Hino Nacional e ameaçaram agredir os seguranças, que recuaram e cercaram as saídas do plenário. O presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), recusou-se a negociar com os “baderneiros”, que foram detidos, identificados, indiciados pela Polícia Legislativa e encaminhados para a Polícia Federal. Reagiu à altura do cargo de presidente de um dos poderes da República, diante de um fato muito grave: impedir o funcionamento do parlamento é um atentado à democracia.

A ação dos manifestantes tem todas as características de uma provocação política, num momento em que a crise de governabilidade do Rio de Janeiro é gravíssima. Os mais velhos se lembram do Cabo Anselmo, líder da revolta de marinheiros que serviu de pretexto para o golpe militar de 1964. A quebra de hierarquia nas Forças Armadas provocou o colapso do chamado “dispositivo militar” do general Assis Brasil. O que aconteceu depois foi a destituição do presidente João Goulart e 20 anos de ditadura. Revelou-se mais tarde que Anselmo era um agente do Cenimar, o serviço de informações da Marinha. Alguns remanescentes dessas organizações têm dúvidas se ele já era um “infiltrado” em 1964.

Forma de ação preferida do Movimento dos Sem-Terra, as “ocupações” estão se tornando uma forma de luta generalizada: depois de sem-teto, estudantes, artistas e policiais, agora chegou a vez dos militantes de extrema-direita. No imaginário esquerdista juvenil, essa forma de luta é um pequeno “assalto ao Palácio de Inverno”. Mas, quando ocorrem ações como as de ontem, contra a Assembleia fluminense e a Câmara, por mais que o Parlamento e os políticos estejam desgastados, há que se parar e pensar: até onde isso pode ir? Que forças subterrâneas podem ser despertadas num ambiente de desordem generalizada.

A reflexão das forças políticas mais responsáveis é necessária. A crise no Rio de Janeiro não tem solução de curto prazo: o estado está em colapso. Num texto famoso sobre a crise italiana dos anos 1980, o filósofo e jurista Norberto Bobbio destaca que, quando um governo entra em colapso político, pelo menos as funções essenciais do Estado — arrecadar, normatizar e coagir — continuam funcionando. Não é o caso do Rio de Janeiro. Além da crise na saúde e na educação, o sistema de segurança pública está implodindo, a arrecadação é precária e a Justiça fluminense parece mais preocupada com os próprios privilégios.

Narrativa
O caso do Rio de Janeiro não é isolado, outros estados caminham na mesma direção, sob forte pressão da crise fiscal, de um lado, e da reação das corporações às medidas adotadas para combatê-la. Em nível federal, as medidas de ajuste adotadas pelo governo Temer sofrem forte oposição das forças derrotadas pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff. Ou seja, diante da crise de financiamento do Estado e das consequências sociais da recessão, há um agravamento sério do conflito distributivo e muita fricção no processo político.

Além disso, a narrativa do golpe de Estado e a campanha sistemática contra a Operação Lava-Jato servem de elementos legitimadores da radicalização política. Grupos de ativistas ocupam sistematicamente repartições e espaços públicos como se isso fosse uma ação em defesa da democracia. Não importa se a maioria discorda da forma de luta. Muito menos se o principal prejudicado é o cidadão. Se as regras do jogo não são respeitadas e a desordem se instala, a bandeira da ordem surge naturalmente nas mãos de quem tem mais força para empunhá-la, mesmo que não tenha legitimidade. É aí que mora o verdadeiro perigo. Foi pedagógica a decisão de Rodrigo Maia de processar os invasores do plenário. O que garante a nossa democracia é o pleno funcionamento do Congresso.

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