segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Contra a evidência – Editorial/Folha de S. Paulo

Uma coisa evidente, como sugere a própria etimologia do termo, é algo que salta à vista, que surge à frente de todos claramente.

Parecerá evidente a qualquer cidadão que o posto de presidente da República é incompatível com a posição de réu numa ação criminal.

É com base nesse princípio que a Constituição determina que o chefe do Executivo termine suspenso de suas funções caso uma denúncia contra si seja recebida pelo Supremo Tribunal Federal, dando início a um processo penal, ou na hipótese de se instaurar processo de impeachment no Senado.

Parece fácil concluir que a condição de réu no STF também é inconciliável com os cargos de presidente da Câmara dos Deputados e do Senado, que se encontram na linha de sucessão da Presidência.

Mesmo para as situações mais simples, porém, o universo jurídico admite torneios de interpretação. Foi assim que o ministro Dias Toffoli pediu vistaspara analisar melhor um processo cuja pertinência e evidência, sem trocadilho, salta aos olhos de qualquer observador.

Trata-se de uma ação movida no Supremo pela Rede Sustentabilidade, ainda nos tempos em que Eduardo Cunha (PMDB-RJ) se aferrava ao comando da Câmara, mesmo sendo réu acusado de corrupção e lavagem de dinheiro.

A cassação do mandato de Cunha e posteriormente sua prisão não tornaram extemporânea a iniciativa da Rede. Importa inviabilizar as brechas de interpretação que permitem a um réu desfrutar de poderes políticos capazes, no mínimo, de jogar sobre seu próprio julgamento as sombras da barganha, da influência e da suspeição.

Para o ministro Marco Aurélio Mello, relator do caso no Supremo, não há dúvidas de que um réu não está apto a ocupar a presidência de uma das Casas do Legislativo. A maioria de seus pares o acompanhou na decisão.

Praticamente resolvida, a ação tinha especial repercussão para o futuro político do presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), alvo de nada menos do que 11 inquéritos no Supremo.

Eis que o ministro Dias Toffoli pede vistas do processo –o que pode significar, na absurda prática vigente, engavetá-lo por tanto tempo quanto achar necessário. No mínimo, pode-se supor, até fevereiro, quando terminará o biênio de Renan no comando do Senado.

Por mais legítimas que sejam as dúvidas doutrinárias do ministro, a maioria do STF já tinha tomado sua decisão. A atitude de Toffoli só a procrastina; conflui, por certo, para os interesses de Renan e os do próprio governo de Michel Temer (PMDB), que o prefere na condução dos debates sobre as próximas medidas econômicas.

Mas conflui, sobretudo, para reforçar a impressão de que a chicana, o arranjo de bastidores e a sobrevivência política de algumas figuras valem mais do que o bom senso, a lei e a justiça.

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