domingo, 27 de novembro de 2016

Isenções no Rio superaram gastos com setores essenciais

• Estado abriu mão de R$ 166,7 bi em impostos, mais do que gastou em saúde, educação e segurança

Rafael Galdo - O Globo

Os investimentos do Estado do Rio em segurança, saúde, educação e assistência social, de 2009 a 2015, ficaram muito aquém dos incentivos fiscais, de acordo com o Tribunal de Contas e o Ministério Público estaduais. No período, a política de isenções fez com que as empresas deixassem de recolher R$ 166,7 bilhões de ICMS aos cofres estaduais. Nos quatro setores essenciais, os gastos totalizaram R$ 117,7 bilhões, mostra Rafael Galdo. O governo informa, porém, que a renúncia foi de R$ 46,5 bilhões.

No olho do furacão dos debates sobre a crise, as isenções fiscais dadas pelo Estado do Rio de 2009 a 2015 somaram mais do que o governo investiu em saúde, educação, segurança pública e assistência social. Os investimentos nessas políticas básicas alcançaram R$ 117,7 bilhões no período, contra R$ 166,7 bilhões em benefícios concedidos no mesmo período, segundo números que constam da ação civil do Ministério Público (MP) estadual que questiona as dispensas de impostos pelo governo. Apenas no ano passado, quando as contas fluminenses já ruíam, o estado ofereceu às empresas incentivos na ordem de R$ 36 bilhões — valor que equivale a 71,6% da receita corrente líquida do Rio, de aproximadamente R$ 50,3 bilhões. Às quatro áreas que prestam serviços essenciais à população, foram destinados em 2015 R$ 20,5 bilhões (40,82% da receita).

— As comparações são assombrosas. Mostram quais são as prioridades do estado, que prefere conceder isenções a gastar com saúde e educação. Não que as isenções sejam a única causa da crise. Há inúmeras, entre elas a corrupção. Mas o comprometimento do poder de arrecadação do estado foi bastante significativo — diz o promotor Vinícius Cavalleiro, da promotoria de Tutela Coletiva e Defesa da Cidadania, um dos autores da ação do MP.

VALORES DISCREPANTES
As cifras de benefícios apresentadas pelo Ministério Público constam no sistema DUB-ICMS (Documento de Utilização de Benefício), em que as próprias empresas informam ter obtido dispensa de pagamento de tributos pela Secretaria estadual da Fazenda. Foram as mesmas apuradas pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE) e publicadas no voto do conselheiro relator José Gomes Graciosa na apreciação das contas de 2015 do estado. No texto, ele determinou a realização de uma auditoria sobre as isenções que, segundo o tribunal, está em fase final e pode ser votada até o fim deste ano.

Tanto o MP quanto o TCE fazem críticas ao DUB-ICMS, por se tratar de um sistema autodeclaratório das empresas e que, por consequência, pode ter inconsistências. Mas é em cima desses dados que a Sefaz realiza depurações para chegar ao que o estado reconhece oficialmente como renúncia fiscal. Feitos esses cálculos, o valor total de renúncias de 2009 a 2015 chegaria a cerca de R$ 46,5 bilhões. Só no ano passado, seriam R$ 9,3 bilhões, somando os incentivos concedidos pelo Executivo, por meio de leis editadas no Legislativo, e também no âmbito do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz).

Sobre as isenções dadas este ano, quando a crise se agravou, a Fazenda afirma que não pode divulgar a lista de empresas beneficiadas nem os valores renunciados. A alegação é de que essas informações seriam protegidas por sigilo fiscal. Dificuldade de acesso, no entanto, que é questionada pelo promotor Vinícius Cavalleiro.

— É uma tremenda caixa-preta. Falta transparência. Além disso, como o sistema tem dados autodeclarados pelas empresas, estima-se que deva haver até três vezes mais benefícios. Os que estão declarados não sofrem investigação alguma do estado, nem comparação com a realidade. E ainda assim são depurados pela Fazenda — diz ele.

CPI E AÇÕES JUDICIAIS
Enquanto o estado enfrenta dificuldades para pagar a servidores, fornecedores e prestadores de serviço, as concessões de benefícios são postas em xeque por outros órgãos. Desde 26 de outubro, o governo está proibido, por decisão liminar da 3ª Vara de Fazenda Pública do Rio, de conceder, ampliar ou renovar benefícios fiscais ou financeiros até que apresente um estudo de impacto de todos os incentivos em seu orçamento. Na última sexta-feira, a mesma vara mandou intimar o governador Luiz Fernando Pezão para que ele explique por que deu benefício fiscal retroativo a 2013 à joalheria Sara Joias, contemplada com um regime tributário especial em publicações em Diário Oficial neste mês de novembro.

Também na sexta, a Justiça determinou que a Fazenda apresente a relação completa das empresas que receberam benefícios fiscais nos últimos dez anos, assim como o valor de impostos de que o estado abriu mão. A decisão atendeu a um mandado de segurança impetrado pela bancada do PSOL na Assembleia Legislativa (Alerj).

Segundo o deputado Marcelo Freixo (PSOL), em agosto, o secretário estadual da Fazenda, Gustavo Barbosa, informou que não divulgaria as informações, alegando sigilo fiscal. O parlamentar argumentou, no entanto, que a justificativa não se aplicava, porque seriam dados de interesse público.

— Não sou contrário às isenções. Elas são necessárias à geração de empregos e para o crescimento de determinadas regiões. Mas, no Rio, não temos transparência. Hoje, não sabemos a real lista de isenções. Questionamos ainda a fiscalização feita a partir da concessão. Quantas vezes o governo visitou as empresas beneficiadas? Nós temos relatos de que nunca — defendeu Freixo, lembrando que, das empresas que receberam incentivos ano passado, 22 estavam inscritas na dívida ativa.

Na Alerj, uma CPI sobre as isenções ficou para fevereiro. Mas, no início deste mês, os deputados já tinham aprovado o projeto de lei 1.431, que impede, por dois anos, a concessão e a renovação de incentivos fiscais pelo governo. E o próprio presidente da Casa, Jorge Picciani (PMDB), fez um mea culpa na semana passada:

— Dou a mão à palmatória. O Legislativo errou em 2004 ao permitir que o Executivo concedesse os benefícios por decreto. O melhor seria o governo abrir todas essas caixas-pretas.

BENEFÍCIOS NO AUGE DA CRISE
Nos últimos anos, até termas na Zona Sul receberam isenções. Enquanto o estado não abre a lista de todos que receberam incentivos, parte dos benefícios deste ano está na ação civil do MP, que elencou empresas enquadradas em regimes tributários diferenciados em 2016. Entre elas, de março a junho, o MP identificou os CNPJs de 18 joalherias e relojoarias, beneficiadas pelo decreto 41.596, de dezembro de 2008, do então governador Sérgio Cabral, que reduz o ICMS para operações do setor.

Das 18, um total de 16 correspondem a diferentes inscrições da H.Stern (com os nomes HSJ Comercial SA e H. Stern Comércio e Indústria SA), cuja diretora comercial, Maria Luiza Trotta, contou na semana passada que vendia joias na casa de Cabral, no Leblon. Na relação, também já aparecia a Sara Joias da Rua Garcia D’Ávila, em Ipanema, cujos advogados alegaram que apenas a empresa se enquadrou na decisão política do governo que concedeu o regime tributário diferenciado ao setor.

Já no segundo semestre deste ano, nos dois meses subsequentes ao decreto de calamidade financeira (julho e agosto), o MP identificou 50 benefícios, para indústrias e estabelecimentos comerciais. Outros 11 ocorreram em setembro, quase todas para indústria do setor alimentício. Em outubro, até o dia 19, tinham sido mais cinco.

Apesar das críticas, a Fazenda defende as isenções. Sobre o setor de joias, por exemplo, diz que, de 2008 a 2015, foram atraídos 101 estabelecimentos para o Rio devido ao incentivo, com aumento de 129% no recolhimento de ICMS do setor.

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