domingo, 13 de novembro de 2016

O preço da perversidade - José de Souza Martins

• Tanto nos EUA do presidente eleito Trump como no Brasil das últimas eleições, as urnas têm rechaçado o capitalismo da caridade iníqua e da pobreza conveniente, diz sociólogo

O Estado de S. Paulo / Aliás

Um conjunto relativamente extenso de questões está vinculado à inesperada eleição do republicano Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, derrotando no colégio eleitoral Hillary Clinton, democrata, que teve a maioria dos votos populares. Questões relativas ao fato de que estas eleições americanas representaram o ápice de um processo político mundial de redefinição da própria política, de anulação dos sujeitos tradicionais e típicos da concepção de política inaugurada com a Revolução Francesa, da própria concepção de povo. As transformações neste episódio não dizem respeito apenas à sociedade americana e ao capitalismo que ela representa e centraliza.

Na campanha, Trump não falou em nome de uma doutrina política nem mesmo em nome de seu partido. Falou em nome da multidão que não se identifica com os canais históricos de expressão da vontade política. Falou em nome da antipolítica, de um capitalismo que não é o capitalismo da Bolsa, de quem especula e ganha sem trabalhar, mas sim o capitalismo do bolso, de quem só pode ganhar se tiver trabalho. Ainda assim, esses eleitores são os que pensam o trabalho no marco da possibilidade de ascensão social, de negar-se sendo o outro que a sociedade de consumo promete. Trump falava sério. Não é estranho que seu primeiro discurso tenha sido um discurso de teor keynesiano, o trabalho gerador de emprego e renda para reincluir os esquecidos. Um plausível discurso rooseveltiano. Mas há um milenarismo bufo em sua fala populista e nacionalista, que não houve em outros atores bufos da política contemporânea, como Bóris Yeltsin, que demoliu a União Soviética sem propiciar sua superação. Ou como Berlusconi, melancólica expressão da decadência da Itália culta e civilizada.

O voto desta eleição americana foi contra o que representa Wall Street, mas não foi contra o que representa o Tio Patinhas. A personagem decisiva no eleitor decisivo foi, mesmo, a classe média do Pato Donald, com sua frustração e sua ira acumuladas nas várias décadas da globalização que em vários lugares anulou identidades nacionais, aniquilou regras históricas de integração social e de atuação política, que aplainou as fantasias da igualdade jurídica na competição com base na desigualdade econômica. Não há aí nenhuma novidade: sob a máscara da cidadania perfeita a sociedade moderna tem sido a sociedade da iniquidade perfeita, a dos ardis que dizem a cada um o que é não sendo.

As pesquisas eleitorais enganaram os analistas costumeiros munidos de elaboradas técnicas de adivinhação do que vai acontecer. Só o Los Angeles Times, pró-Clinton, associado à Universidade do Sul da Califórnia, acertou, fazendo suas previsões com base em minúcias de mentalidade e de comportamento eleitoral e político, supostamente irrelevantes, que acabariam decisivas no resultado final das eleições. Mais antropologia e sociologia do que ciência política.

Nesse assunto, as ciências sociais se equivocaram ao deixar de lado o que é próprio do homem comum e cotidiano dos tempos atuais. E, ao deixarem de lado em suas análises a extensa categoria de pessoas que nem são ricas nem são pobres, motivadas por carências próprias, abandonadas pelo classificacionismo pseudo-sociológico que conhece por imputação e não por investigação, mais dedutivo do que indutivo, mais para confirmar o supostamente sabido do que para descobrir o não sabido. Deixaram de lado as multidões tolhidas e silenciadas, as vítimas da manipulação política e ideológica para as quais não há lugar no catálogo de anomalias relevantes da sociedade atual. Caso do desemprego, dos favorecimentos falsamente corretivos da pobreza, os recursos de maquiagem dos defeitos e feiuras do mundo contemporâneo. Caíram nas ilusões que inventaram.

Isso tem acontecido também aqui no Brasil, os analistas perdidos mais entre acusar do que explicar, aprisionados pela estreiteza de considerações pouco convincentes sobre direita e neodireita. Não será por aí que proporão a compreensão do que vem acontecendo no País, especialmente desde as manifestações de rua de 2013, até a cassação de Dilma Rousseff e ainda o que virá pela frente. Criaram o artifício do neo-isto, neo-aquilo, que acaba sendo neo-coisa-nenhuma: neoliberalismo, neodireitismo, neoesquerdismo; neopentecostalismo político.

Na verdade, lá e cá, os eleitores destas manifestações eleitorais recentes opuseram-se ao capitalismo da ordem social regulada pelos auxílios, benefícios e favorecimentos aos desvalidos e marginalizados, os sobrantes, desempregados e subempregados, os estrangeiros clandestinos e baratos, à pobreza conveniente e lucrativa.

Ao capitalismo de remendos e curativos, de caridades compreensíveis mas iníquas do ponto de vista dos que sucumbem sob o peso de taxações, de tributações que mantêm bolsas e cotas, à violação do princípio da igualdade e da competição, a isso reage eleitoralmente a vítima. Mandaram o recado: não se corrige perversidades econômicas com injustiças.
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José de Souza Martins, sociólogo, membro da Academia Paulista de Letras, entre outros livros, autor de Uma sociologia da vida cotidiana (Contexto)

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