sábado, 12 de novembro de 2016

O que será da democracia com a vitória de Trump? - Fernando Abrucio

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Cada vez mais pensadores e pesquisadores apontam uma espécie de fadiga da democracia contemporânea. Isso vale não só para países menos desenvolvidos e com tradição autoritária. Debates feitos nos últimos números da importante "Revista Journal Of Democracy" mostraram visões diferentes sobre a situação no mundo desenvolvido.

Alguns acreditam que a perda de confiança no regime democrático já acendeu o sinal vermelho nos Estados Unidos e na Europa. Mas outros pensam que se trata de uma crise, evidentemente séria, mas que não há uma alternativa autoritária no horizonte, pois nem a sociedade nem as lideranças políticas apoiariam esse tipo de mudança. O teste de fogo para essas teorias acaba de surgir: a vitória de Donald Trump à Presidência dos Estados Unidos.

A primeira consequência desse resultado é que muitos outros líderes com o perfil populista e antiestablishment, presentes em várias partes do mundo, com destaque na Europa, poderão dizer agora: "Yes, we can". Marine Le Pen e seu eleitorado têm motivos para crer que conquistarão a Presidência francesa mesmo fazendo um discurso xenófobo. A extrema-direita alemã, tão combatida (quando não proibida) depois da Segunda Guerra Mundial poderá ganhar um enorme impulso. E outros exemplos nessa linha poderão pipocar nos próximos meses. Ou seja, mais do que a vitória em si, a ascensão de Trump tem chances de gerar um efeito bola de neve, com resultados imprevisíveis sobre a democracia representativa.

Muitos poderão dizer que os sinais desse processo já tinham aparecido antes, como na votação do Brexit e, mais perto dos brasileiros, o resultado do plebiscito da Colômbia sobre o processo de paz.

Na verdade, esse fenômeno cresceu gradativamente desde a década de 1990 para cá, com mais ênfase a partir da grande crise de 2008. Os partidos mais tradicionais, que no geral ajudaram a construir a democracia no pós-Guerra, decaíram, com velocidades diferentes entre as nações, impressionantemente nos últimos dez anos.

Observando os dados do "World Value Survey", grande pesquisa de opinião com informação sobre 97 países, vê-se a queda da confiança nas instituições políticas foi muito forte nas democracias ocidentais, embora maior nos Estados Unidos do que na Europa. Além disso, os indícios de que a globalização estava perdendo força cresceram no último ano, e o economista Dani Rodrik fez artigos premonitórios quanto a isso.

O "ovo da serpente" já existia, pode-se dizer hoje, mas não havia ainda nenhuma vitória numa nação tão estratégica como os Estados Unidos. Somente agora será possível testar as consequências do fenômeno. Claro que uma primeira hipótese é que o discurso de campanha é uma coisa, o governo, outra. O próprio Trump fez um discurso bastante conciliador após o anúncio de sua eleição, pedindo a união da nação. Poderia contar favoravelmente a essa tendência o fato que os republicanos terão maioria nas duas Casas do Congresso, o que facilitaria a vida do presidente.

Mas como Trump agradaria seu eleitorado mudando tão rapidamente de rota? O exemplo brasileiro recente, da ex-presidente Dilma Rousseff, mostrou que ganhar com um programa e governar com outro não é nada bem visto pelos eleitores.

Afinal, Trump prometeu o que muitos eleitores americanos querem ouvir há pelo menos dez anos. Como se sabe, a economia melhorou muito no último governo Obama, com desemprego baixo e crescimento contínuo. Todavia, isso não mexeu quase nada com a desigualdade e, sobretudo, não alterou a percepção de grande parte da classe média branca de que, pela primeira na história recente dos Estados Unidos, as pessoas não teriam uma vida melhor do que a geração familiar anterior. O presente é pior do que o passado, além da possibilidade de que o futuro - leia-se filhos e netos - não recupere a glória do passado. O slogan de Trump foi claro: "Make America Great Again".

A promessa precisará, em maior ou menor medida, ser cumprida. Mas, de que maneira? Tentar fechar a economia será um dos caminhos mais prováveis, criando aí talvez o "maior muro" do governo Trump. Só que isso terá impacto na relação com os outros países. Muitos reagirão e as vantagens comerciais dos EUA em várias áreas, como tecnologia da informação, celulares, serviços financeiros, entretenimento, entre outros, serão perdidas. Os empregos que poderiam ser criados por um dos lados da equação, poderão ser perdidos do outro. De todo modo, é preciso concluir dessa eleição americana algo que os contrários a Trump, e boa parte da elite mundial (incluindo a acadêmica), têm se negado a pensar: é necessário recuperar um padrão de crescimento com redistribuição de renda, tal qual houve nos chamados "30 anos dourados" do pós-Guerra.

Em outras palavras, a agenda econômica de Trump é difícil de ser colocada em prática, embora a demanda que o elegeu continuará presente no eleitorado caso nada seja feito. Mais complicado ainda é o seu receituário em relação às minorias. O caldeirão social poderá ferver a temperaturas nunca antes alcançadas. Os imigrantes em geral, e os latinos em particular, foram vilipendiados ao extremo na campanha. Deportá-los em larga escala é algo de difícil execução e, se tentado, causará conflitos em várias partes do país. Talvez o provável vai ser a tentativa de fechar o caminho para que novos imigrantes cheguem aos Estados Unidos. Num contexto de recrudescimento do nacionalismo, impulsionado pelo próprio presidente americano, e de baixo progresso social nas Américas, isso poderia mudar o pêndulo político nos países da região, principalmente na América Central e, mais ainda, no México, mas com impactos também na América do Sul. O impacto geopolítico e econômico disso não é desprezível.

A tendência de continuar com o discurso misógino e de baixo calão em relação às mulheres é menos provável, mas tem chances de acontecer, pois, como dizia a velha fábula do sapo e do escorpião, isso seria da "natureza" de Trump. É preciso notar que um dos votos mais envergonhados na eleição presidencial de 2016 foi o do eleitorado feminino. Será que uma nova onda de impropérios geraria reações em massa de descontentamento? E se isso vier com manifestações presidenciais de cunho racista? Se Trump quiser governar sem construir um cenário socialmente explosivo, terá que falar menos.

Claro que Trump pode, voltando à primeira hipótese, domesticar-se e fazer mudanças mais tópicas, sem atingir grupos sociais estratégicos, que podem fazer mais barulho e estrago em períodos não eleitorais.

Na mesma linha, o novo presidente americano adotaria estratégias mais incrementais ou de menor alcance no plano da economia. Ele se adaptaria ao sistema, em maior medida do que faria ações para transformá-lo. O problema é se isso não causaria um descontentamento enorme no seu eleitorado, sem ganhar um espaço no terreno de quem votou contra ele. Dito de outro modo, Trump pode não se tornar o desastre que Wall Street vem anunciando, mas é difícil imaginar que os financistas de Nova York comecem a morrer de amores pelo trumpismo.

Se a trajetória pública de um líder diz alguma coisa sobre o futuro, isso não diz respeito ao conteúdo das ações, mas a forma como ele age. Caso seja verdadeiro esse enunciado, Trump continuará impetuoso na Presidência, medindo menos do que o necessário o efeito de suas falas e propostas. Foi dessa forma que ele brigou com a maior parte da elite do Partido Republicano - embora tenha ficado com o eleitorado do partido. Seguindo esse raciocínio, há grandes chances de o novo presidente americano trombar com muitos grupos. E mesmo tendo maioria no Congresso, se sua liderança for exercida como um trator, Trump pode gerar insatisfações que mudariam seu poder político.

O cenário de um Trump impetuoso, pouco respeitoso com as instituições e suas lideranças, totalmente desbocado em relação às minorias, mantendo negócios de funcionamento duvidoso, a junção de tudo isso num homem só seria o maior teste da democracia americana desde sua formatação pelas ideias de James Madison, expostas no clássico "Os Federalistas" e colocadas em prática com a criação da Constituição. O modelo madisoniano é baseado no conceito de "checks and balances": o sucesso da democracia americana estaria em estabelecer controles mútuos a todos os Poderes e lideranças, evitando assim qualquer forma de despotismo.

Mesmo tendo havido um enorme conflito no meio do caminho - a Guerra de Secessão - e outros acidentes de percurso importantes - como o assassinato de quatro presidentes -, acredita-se que a engrenagem básica da democracia americana segurou qualquer destempero institucional que pudesse levar a formas de tirania. Tal sucesso democrático terá em Trump sua prova de fogo. Afinal, se o conflito político-social chegar a um nível insuportável, sempre existe o nunca usado impeachment como ameaça e garantia.

O pior pesadelo, o do Trump sem freios e com comportamento autoritário, não pode nunca ser descartado. Mas, se isso ocorrer, talvez estejamos entrando num novo mundo, mais parecido com a década de 1930, ou pior, pois os Estados Unidos à época foram o bastião da democracia. Uni-vos, pessoas democráticas de todo o mundo, contra esse cenário tenebroso.
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Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e coordenador do curso de administração pública da FGV-SP,

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