domingo, 27 de novembro de 2016

Rótulo em branco - José de Souza Martins

-O Estado de S. Paulo

• A esquerda não tem feito o esforço de traduzir em teoria a realidade social do País, e prefere copiar experiências que não são nossas, diz sociólogo

Em entrevista densa e de teor raro entre petistas, o prefeito de São Paulo prevê que a polarização política no Brasil, nos próximos anos, será entre direita e extrema direita. Convém considerar, porém, que tem havido polarizações de um lado e de outro do cenário, como componente crônico do processo político. Os próximos anos serão de polarização também entre esquerda e extrema esquerda, esquerdas procurando o rumo que perderam lá atrás, principalmente na época do mensalão. Nos dois casos, porque a direita se fortalece e desglobaliza o mundo e a esquerda se perde porque demoliu identidades profundas dos que poderiam identificar-se com ela. Aqui, tudo virou conceitualmente “trabalhador” e “companheiro”, mesmo que intimamente as pessoas tenham outras identificações precedentes e decisivas, das quais não abrem mão. Estamos vivendo num fim de era que pede diversa compreensão da realidade, oposta à da reafirmação das categorias de polarização e contraposição de pessoas, grupos e partidos.

Quando a categoria ideológica “trabalhador” divide famílias, antepõe filhos e pais, separa amigos, contrapõe vizinhos e colegas de trabalho, joga alunos contra professores, destrói a comunidade necessária entre quem ensina e quem aprende, mina as solidariedades tradicionais e constitutivas da nação, sobrepõe a raiva ao afeto, o desacordo ao pacto necessário a que a sociedade exista independente das diferenças que a civilizam e dos conflitos que a dinamizam.

A questão é o que vem antes e o que vem depois. Isso é hoje muito claro na consciência nacional. Na última eleição, o povo mandou o recado aos partidos políticos, todos, não só os de esquerda. Votar no PT deixou de ser uma opção porque o PT colidiu com sentimentos profundos da identidade do brasileiro. O PT e outros partidos de esquerda comprometerem o sentimento de pátria no grave equívoco de suporem que pátria é uma categoria secundária e de direita. Dificilmente haverá uma frente de esquerda duradoura, quando muito meramente eleitoral, as várias facções disputando hegemonia e empregos públicos favorecidos e bem remunerados.

Tanto na direita quanto na esquerda, os únicos fatores de unidade são hoje os meros rótulos de autodesignação: direita e esquerda. A esquerda está virando um button. Além do rótulo, há pouco. Não é incomum que membros e simpatizantes de partidos de esquerda tenham comportamentos de direita e raciocínios de justificação completamente direitistas. Nossas esquerdas não têm feito o esforço da tradução da realidade social e histórica singular numa teoria de sua própria práxis. Preferem copiar e imitar experiências que não são nossas nem delas. Já chegamos a querer pensar como russos, cubanos, chineses ou albaneses. Acabam fracassando porque o que conhecem é irreal e desconhecem o real.

O PT, o PSOL e outros partidos de esquerda jogam na vala comum do esquecimento e da imprecisão conceitual a grande massa eleitoral de centro, o centro da indiferença e do cansaço com os partidos, que, afinal, foi quem decidiu a última eleição municipal. Os partidos são viciados em reconhecer que só devem ser objeto de consideração no protagonismo político quem tem vínculo partidário, como se fosse uma religião, embora entre nós o comportamento eleitoral seja no geral desvinculado de partidos políticos. Quase sempre um comportamento eleitoral de ocasião.

A imprecisão identitária de esquerda e direita deixa um rastro de dúvidas políticas curiosas, sobretudo depois que esquerdas, com sua pedagogia ideológica bipolarizada, dividiram o País em duas humanidades opostas, não só em relação a partidos, mas em relação a tudo. Mães de direita podem ter filhos de esquerda? Filhos de mulatos são negros ou são brancos? Ou são brasileiramente mestiços, como a maioria do povo brasileiro? O PT é um partido de esquerda ou de direita? Em todos esses casos, com a devida vênia a todas as excelências da República, a resposta mais sensata talvez seja nem sim nem não, muito pelo contrário.

Aparentemente, ainda não há estudos consistentes sobre o nosso senso comum e o modo como os brasileiros recepcionam e assimilam doutrinas que nos vêm de fora: políticas ou religiosas. O fascismo teve aqui características circenses. E, o que é pior, difundiu-se, disfarçadamente, também em partidos de esquerda, no dogmatismo, na intolerância, na satanização dos adversários. O marxismo se difundiu muito mais com base no Manifesto Comunista, um panfleto. Um texto distante da solidez teórica da obra de Marx e da obra de Engels. Não obstante, há uma generalizada percepção dessas nossas insuficiências.

Quando eu era estudante da Faculdade de Filosofia da USP, há meio século, período de crise do marxismo oficial, estudantes diziam que, no Brasil, a política era regulada pelas ideias de Cristóvão Colombo: “indo pela direita, um dia chegaremos à esquerda”. Ou, já na proximidade do golpe de 1964: “Com uma esquerda dessas, não é preciso direita”, o que parece ainda tristemente válido.
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José de Souza Martins, sociólogo, membro da Academia Paulista de Letras e autor, entre outros livros, de A política do Brasil lúmpen e místico (Contexto)

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