quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Tempos bicudos - Merval Pereira

- O Globo

É um sinal dos tempos bicudos que vivemos a manifestação de ontem em frente ao Congresso ter sido contra a PEC do teto de gastos, e não contra a tentativa de anistiar o caixa dois eleitoral.

Sinal de que os valores estão trocados, de que já não há mais noção do que seja prioridade nacional, todos tratando de seus interesses particulares, aí incluídas corporações de funcionários públicos e até indígenas manipulados por organizações supostamente de esquerda que consideram o equilíbrio fiscal ferramenta de direita, mas não se incomodam com as manobras para livrar a cara de políticos corruptos de todos os matizes — que, afinal, são os responsáveis pela situação de penúria em que o país se encontra.

É sintomático que, em meio a essa crise generalizada, venha o ex-presidente Lula distorcer a realidade, acusando o governo de Michel Temer de ser o responsável pela taxa de desemprego de 12%. As falas de Lula sempre se caracterizaram por representarem uma versão da realidade que, na maioria das vezes, não corresponde ao que realmente aconteceu, mas, como líder carismático que é, Lula intuiu desde sempre que sua palavra tem o peso da verdade para seus seguidores.

Estava praticando na política a célebre norma ditada pelo famoso político mineiro Gustavo Capanema, segundo a qual o que vale é a versão, não o fato. Mais tarde, o dramaturgo Nelson Rodrigues resumiu assim a ideia central: se os fatos não confirmam minha versão, pior para os fatos.

Essa utilização da verdade pessoal na política se transformou nos últimos tempos, com o advento das novas tecnologias de comunicação, num fenômeno conhecido como pós-verdade, expressão escolhida pelo Oxford Dictionaries, departamento da Universidade de Oxford, como simbólica deste ano.

Usada pela primeira vez pelo dramaturgo sérvioamericano Steve Tesich, define a situação em que fatos têm menos influência na opinião pública do que emoções. Diante desse fenômeno global, potencializado pelos novos meios de comunicação, há quem tema que estejamos forjando uma cultura de pouca reflexão, com informações fragmentadas e desconexas, prevalecendo os sentimentos primários.

O país vive período de transição em que a velha política tenta se manter dominante, diante da avalanche de denúncias que indicam que o modelo está completamente desmoralizado. Como disse o presidente do Senado, Renan Calheiros, em uso precário da pós-verdade, o modelo político brasileiro está “caquético e falido”.

Logo ele, que é alvo de 11 processos no Supremo Tribunal Federal (STF) e lidera uma ação para pressionar juízes e promotores com uma lei de abuso de autoridade que pode ter seus bons motivos para ser aprovada, mas nenhum deles está sendo levado em conta por Renan e seus acólitos.

O que eles querem mesmo, a exemplo do que na Câmara querem fazer com as dez medidas de combate à corrupção, é usar um bom projeto para atender a seus interesses próprios. No caso do Senado, constranger o Judiciário. Como bem denunciou a presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, “criminalizar a jurisdição é fulminar a democracia”.

Nesse clima de fim de feira, onde cada corporação tenta salvar a própria pele diante da ânsia por uma nova política expressa pela sociedade brasileira, somente a pressão popular pode impedir os avanços contra a democracia, inclusive os de ontem, em que corporações e movimentos partidários simulam a defesa de interesses da sociedade para defenderem seus privilégios, utilizando até mesmo a violência física e a depredação do patrimônio público.

O governo, que permaneceu leniente diante da tentativa de anistia de crimes políticos de parlamentares, teve que vir a público, apoiado pelos presidentes da Câmara e do Senado, para garantir que está disposto a ouvir “a voz das ruas” e que não aceitará qualquer tipo de anistia indevida.

Bastava que, desde o início, ouvissem as próprias consciências, se consideravam mesmo inaceitável esse tipo de ação. Mas participaram do acerto político que visava aprovar a anistia, e o próprio Temer declarou que, se o Congresso aprovasse, não poderia vetar.

Depois, recuaram diante da pressão da opinião pública. Essa atitude ambígua dá margem a que as corporações e grupos opositores assumam a manifestação contra a PEC do teto dos gastos como se representassem a opinião pública, e o governo fica fragilizado por não ter uma posição firme para apoiar o que está certo, como o controle dos gastos públicos, e repudiar o que é inaceitável, como a anistia aos crimes de políticos.

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