quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

A luz de Dom Paulo - Míriam Leitão

- O Globo

Dom Paulo trouxe esperança em tempo de aflição. D. Paulo tinha um jeito manso de falar, mas suas atitudes eram de uma firmeza inabalável. Com mansidão e destemor, ele guiou, amparou, acalmou e deu esperanças ao país em momento de grande aflição. Seu papel no registro dos crimes da ditadura é até hoje insuperável. Ao nos deixar em tempo de acirramento do ódio e da polarização, ajuda a lembrar a necessidade do reencontro.

Havia outros cardeais e líderes religiosos na travessia mais difícil do país no meio do regime militar. D. Helder Câmara, o arcebispo de Olinda e Recife, era tão odiado pelos governantes de então que seu nome virou impronunciável. Ninguém podia escrever nos jornais sobre D. Helder. Era proibido pela censura. Por isso, nos registros da morte de Vladimir Herzog e no culto ecumênico na Catedral da Sé não se fala da sua presença, mas ele estava na Sé. O culto foi conduzido por D. Paulo Evaristo Arns, rabino Henry Sobel e pastor presbiteriano Jaime Wright, como se sabe. Mas ele estava lá e Clarice se lembra bem do abraço e do aconchego.

O grande amparo, a pessoa que esteve o tempo todo com a família Herzog foi D. Paulo. Clarice e os filhos continuaram se encontrando com ele sempre. Na última visita, no aniversário dele, em setembro, Clarice brincou:

— D. Paulo, esqueça o céu, seu lugar é na terra, junto conosco porque precisamos muito.

Ivo, que tinha nove anos na época da morte do pai, se lembra bem da presença dele consolando e amparando a mãe. Ao apoiar de forma tão completa esta família, D. Paulo estava sendo cristão, mas ao mesmo tempo era como se estendesse a todos os jornalistas, que se sentiram fracos e vulneráveis naquele momento, o seu amparo. Ao abrir as portas da Catedral da Sé para o culto ecumênico, resistindo a todas as pressões da ditadura, ele estava comandando um dos mais vigorosos atos de protestos e resistência que o Brasil viu no tempo em que esteve sob o AI-5.

Antes daquela morte, no entanto, D. Paulo já havia prestado outros serviços à resistência brasileira. A criação da Comissão de Justiça e Paz foi uma das etapas dessa luta em que houve a sistemática condenação aos crimes cometidos pelo regime militar. A mais duradoura das contribuições foi o projeto Brasil Nunca Mais, que ele coordenou com o pastor Jaime Wright e que deixou registrada a denúncia feita pelos réus, diante dos tribunais militares, de que foram torturados. Até hoje não existe nada mais forte do que aquele projeto.

Ele foi uma luz naquela escuridão, uma luz tão forte que era para a Sé que se olhava independentemente de onde se estivesse no Brasil daqueles anos 1970. Mas sua atuação em defesa dos mais fracos não se limitava aos presos políticos. Seu trabalho pastoral foi além da política e além das fronteiras do Brasil. Nos anos 1980 ele chamou a irmã e pediu que ela organizasse a Pastoral da Criança. Zilda Arns também deixou sua marca nas milhares de vida que seu trabalho salvou.

D. Paulo, que ficou tantos anos recolhido, permitindo visitas apenas aos muito próximos, ao nos deixar ontem criou esse vazio, porque foi ampla e marcante a sua presença na vida brasileira. Ele morre exatamente quando mais precisamos nos lembrar dos seus ensinamentos de aceitação do pensamento divergente, da firmeza nos princípios, e do combate à intolerância.

Vivemos tempos difíceis, ainda que dentro da democracia. Tempo de grande estresse. Campanhas de ódio se disseminam nas redes com uma espantosa ferocidade. Com a ajuda do anonimato, alguns fazem propaganda póstuma da ditadura militar como se fosse uma época para a qual se devesse voltar. Pessoas amigas se apartam por terem pensamentos divergentes sobre os assuntos contemporâneos, como se só houvesse espaço para uma ideia, como se a democracia não fosse o ambiente de natural polifonia.

Quando Ivo Herzog decidiu criar o Instituto Vladimir Herzog, D. Paulo entregou a ele conselhos e anotações, que ele ainda guarda como um bem precioso. Nelas, com sua mão trêmula, D. Paulo registrou que deveria se buscar “ideias comuns compartilhadas”, “diálogo inter-religioso” e valores como “a ética universal”. No final, anotou quatro palavras que explicam sua vida e trajetória: “Justiça, verdade, solidariedade, paz”.

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