sábado, 3 de dezembro de 2016

Carta a De Mais - Míriam Leitão

- O Globo

Caro Domenico De Masi. Escrevo-lhe carta aberta com a esperança de que ela siga o mesmo caminho de crítica que fiz aqui e chegou até você. Desta vez, o que tenho a dizer é que seu comentário sobre o livro “História do futuro” me encheu de alegria. Como fez também uma queixa, preciso me explicar. Antes, um registro: admiro sua capacidade de nos fazer pensar sobre o tempo atual, mesmo quando discordo.

Na verdade, não critiquei seu livro “O futuro chegou”, mas certas observações de uma entrevista sobre o fato de o brasileiro estar mais preparado para o ócio. Hoje, entendo melhor o conceito que quis usar. Na sua entrevista ao jornal O GLOBO, sua explicação foi esclarecedora. “Eu entendo ócio criativo pela possibilidade de que todos que fazem trabalho criativo unam trabalho, estudo e lazer.”

Eis o trio perfeito. Quando eles estão unidos, pavimentam o caminho da felicidade. O Brasil já enfrentou estigma no passado de que por sua herança étnica seja pouco dedicado ao trabalho e essa visão sobre o país sempre me incomodou. Além disso, devo abrir um breve parêntesis para uma referência pessoal. Tive uma educação calvinista, baseada na ética do trabalho. Por outro lado, meu pai, pastor presbiteriano, fez sua ascensão social vindo da extrema pobreza nordestina através da educação cujas portas foram abertas pela solidariedade e, claro, pelo trabalho duro. Talvez essa origem explique a primeira reação de incômodo com a palavra “ócio”, que me remete mais ao nada fazer. Com essa digressão pessoal, envio-lhe então um pedido de desculpas se me excedi em crítica anterior.

Aguardo com expectativa seu próximo livro “Uma simples revolução”. Nele, pelo que entendi da entrevista publicada neste jornal, e feita pelo meu colega Rennan Setti, será tratado o mais inquietante e perturbador problema do mundo atual, que é o desaparecimento rápido dos postos de trabalho, como consequência de todas as transformações que não podemos, nem queremos, reverter. Impossível revogar a automação, as novas formas de produção, mudanças de processos que vão destruindo empregos em velocidade avassaladora. O que fazer diante disso?

Sua proposta de redução drástica da jornada de trabalho para 15 horas semanais é perturbadora, confesso. Principalmente para uma workaholic assumida que frequentemente cumpre jornada com este número de horas em um dia. Mas o que me pergunto é como ficarão os custos de produção com uma jornada assim tão curta e como ficará a renda do trabalho. Ela teria que ser tão alta que permitisse ao trabalhador acesso a bens e serviços, mas teria que não onerar as empresas.

Há, certamente, muito a se discutir sobre o mundo do trabalho porque o futuro, como diz você, já chegou. Nós temos que encontrar soluções instantâneas. Temos quase quatro milhões de desempregados apenas entre 18 a 24 anos, idade em que, na sociedade ideal, os jovens deveriam estar ainda estudando. Temos ao todo 12 milhões de desempregados. E o IBGE, quando soma quem não encontra emprego com os que nem procuram porque desistiram e os que declaram que trabalham menos do que gostariam, chega a 23 milhões. É grave, profunda e complexa a crise brasileira do emprego e ela continuará mesmo após o país retomar o crescimento, porque há muito de estrutural nela.

O futuro é mesmo inquietante. A inteligência artificial e a automação vão tirar mais e mais empregos. Contudo, o avanço tecnológico é parte do progresso e tem aberto para todos uma infinidade de possibilidades antes impensáveis. Não acho que a solução para essa crise do emprego seja simples — e isso não é crítica aos seu próximo livro “Uma simples revolução” — mas sei que este é o tema sobre o qual todos temos que nos debruçar.

Mas, enfim, essa carta é para lhe dizer que fiquei realmente feliz com sua resposta à pergunta do repórter sobre o livro brasileiro que lhe interessou. “O daquela jornalista de economia Míriam Leitão”. Depois, disse que fiz crítica “violenta” ao seu livro e concluiu: “Já eu achei o livro dela muito bonito”. Bom, já expliquei a crítica e o contexto. O que tenho a lhe dizer é que ao escrever o livro segui esse seu conselho de unir trabalho, estudo e lazer.

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