segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

O ano passado em perigo - Fernando Limongi

- Valor Econômico

• A irresponsabilidade e a falta de pejo tomou conta de todos

Foi um espetáculo triste. Uma sucessão de equívocos. Ninguém se salvou. A elite brasileira se esmerou em tomar as piores decisões possíveis. Foi um verdadeiro festival. Com a aproximação do fim do ano, o esforço para fazer bobagens parece ter aumentado. Marco Aurélio Mello, Luiz Fux e Gilmar Mendes decidiram, monocraticamente, fechar o ano com chave de ouro.

A moderação cedeu à histeria e ao radicalismo. Quem alertou no início do ano que o impeachment, tal qual a bomba atômica, não deveria ser usada senão para a dissuasão, convenceu-se de que a crise justificava o disparo. O resultado da solução extrema foi colocar o país na tal pinguela. A radiação liberada não escolhe suas vítimas e as sequelas são duradouras e imprevisíveis.

A irresponsabilidade e a falta de pejo tomou conta de todos. Discute-se a antecipação de eleições presidenciais como se fosse uma decisão menor, que se toma em mesa de bar, entre risadas e petiscos.

Remover o PT do poder não trouxe a esperada redenção. A crise política não amainou e tampouco veio a tão esperada retomada do crescimento econômico. O PT não está na origem de todos os males como nos fez querer crer parte da elite ao longo destes últimos anos. Desempenho econômico não é função exclusiva das expectativas ou de gestores responsáveis e bem treinados.

As delações da Odebrecht só vieram confirmar o que todos já sabiam. As empreiteiras, e não apenas a baiana, financiavam a nata dos políticos brasileiros, com representantes atuantes em todos os partidos. A conivência e a promiscuidade são as mesmas, quer o dinheiro tenha sido contabilizado como contribuição oficial de campanha ou caixa dois. Dá na mesma. Como também era de conhecimento comum, que o grupo político que assumiria o poder com o impedimento era o mais emaranhado nestas redes promíscuas Não é de hoje que Temer e seu círculo íntimo são citados em delações. As referências já constam dos depoimentos de Nestor Cerveró e Sérgio Machado. Sabia-se, portanto, a que grupo o poder seria transferido.

Como diz o dito popular: quem pariu Mateus que o embale. Estratégias têm consequências. Clamar por uma reforma política neste momento é pura hipocrisia. É livrar-se da culpa. É como dizer que todos são bons moços, corrompidos pelas instituições com que são forçados a conviver.

Difícil saber a quem conferir o prêmio de trapalhão do ano. O PSDB é um forte candidato. Em uma ação, questionou as contas de campanha da chapa Dilma-Temer, em outra, concorreu para levar o mesmo Temer ao poder. Pois então, qual a posição do partido: confia ou não confia em Michel Temer? João Doria, deve se lembrar, pode perder seu mandato se a justiça der razão a Alberto Goldman, que o acusa de ter comprado votos nas prévias do partido. Os tucanos marcham unidos e sabem claramente que rumos querem imprimir ao país.

O PT não se sai melhor. A oposição se organizou e levou a cabo uma verdadeira conspiração. Tudo bem, mas se passar por vítima da maldade alheia não absolve ninguém de culpa no cartório. Pretender que o partido não contribuiu para sua própria derrocada é agir como uma avestruz. Desconsiderar as mancadas cometidas na gestão da economia e não ver que a crise foi gestada pelo infantilismo expansionista de Dilma Rousseff é tapar o sol com a peneira. Não é possível negar que o partido tenha se lambuzado no poder com grande desenvoltura. Recebeu e usou relógios e outros presentes. Dizer que o fez porque forçado a tanto pela lógica do presidencialismo de coalizão é uma desculpa esfarrapada e sem sentido. As desavenças entre a presidente e o núcleo duro do partido também precisam ser trazidos à equação. Sem estas rusgas, não haveria impeachment.

O prêmio maior, contudo, talvez deva ser reservado ao Supremo Tribunal Federal. A crise atual poderia ter outro encaminhamento se a Alta Corte tivesse assumido seu papel. A famigerada lista de Rodrigo Janot contendo nomes de mais de 40 políticos foi divulgada em março de 2015. O país ficou sabendo que pesavam suspeitas concretas sobre as principais lideranças políticas do país, incluindo ninguém menos que Eduardo Cunha e Renan Calheiros, presidentes da Câmara e do Senado.

Que fez o Supremo em relação a estas denúncias? Do ponto de vista prático, nada ou quase nada. Deixou a água correr sem levar em conta a urgência e a importância das denúncias que recebera. Compare-se o ritmo do Supremo com o de Cunha e de Sergio Moro. Enquanto o Supremo analisava as acusações, o dispôs sem maiores cerimônias do mandato presidencial. Em março de 2015, a associação entre pedaladas fiscais e crime de responsabilidade não havia ocorrido a ninguém. Augusto Nardes tiraria este coelho da cartola meses mais tarde.

Cunha e Moro se aproveitaram desta paralisia e, basicamente, passaram a usar o clamor do povo para agir livremente. Cunha fez questão de declarar que pôs em marcha o processo de impeachment para salvar seu pescoço. Moro expediu um sem número de sentenças, fez acordos livrando uns e outros da cadeia, enquanto a força-tarefa definia quem era o chefe mor da quadrilha. Moro pode ainda tornar públicas gravações ilegais da presidente da República para salvar sua operação.

Nos dois casos, o Supremo reagiu, mas somente após constatar que o leite já havia sido derramado. Nas duas oportunidades, Inês já era morta. Cunha e Moro deram as cartas.

O Supremo Tribunal Federal pecou por omissão. Não assumiu seu papel de órgão máximo da Justiça. Não soube reconhecer a natureza e a gravidade da crise aberta pela Lava-Jato. Levou no banho-maria e o conflito só fez se avolumar. A situação pedia e pede que o Supremo seja capaz de agir como um órgão deliberativo que, pela forma e pelo conteúdo de suas decisões, comprove que está acima dos conflitos, que de fato atua como o guardião da Constituição.

As intervenções recentes dos ministros Marco Aurélio, Luiz Fux e Gilmar Mendes comprovam a insensibilidade e o despreparo político dos integrantes do Supremo. Deixaram o circo pegar fogo e, agora, em lugar de contribuir para apagá-lo, trazem querosene. 2017 promete.
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Fernando Limongi é professor do DCP/USP e pesquisador do Cebrap

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