terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Uma bota de incertezas

• Saída do premier Matteo Renzi é celebrada por eurocéticos e torna-se novo teste para UE

Heloísa Traiano - O Globo

-RIO E ROMA- Da noite para o dia, a Itália se viu mergulhada, mais uma vez, na incerteza sobre seu futuro político. Num simbólico vácuo de poder, o anúncio da renúncia do primeiro-ministro Matteo Renzi — após ter sido duramente derrotado no referendo sobre a reforma constitucional proposta por ele, no domingo — provoca receios de forte instabilidade em Roma e se coloca como um novo teste à União Europeia (UE). Com quase 60% dos votos contra o projeto do premier, o resultado foi considerado uma vitória da oposição populista italiana e brindado por polêmicos líderes antissistema dos vizinhos europeus. E, enquanto começam a surgir os nomes para ocupar a cadeira de Renzi, os eurocéticos italianos já se dispõem a assumir as rédeas de um governo fragilizado e, possivelmente, pressionar por um novo referendo sobre o abandono do euro.

O premier postergou a renúncia até, pelo menos, sexta-feira. Ontem, após o Conselho de Ministros chegar a um consenso pela saída de Renzi, ele foi ao Palácio do Quirinal, sede da Presidência, para comunicar ao presidente Sergio Mattarella que deixará o cargo, mas esperará a votação da Lei Orçamentária, nesta semana.

— Faço isso por senso de responsabilidade e para evitar o exercício provisório do cargo — disse Renzi após a reunião derradeira com seus ministros, citado pelo “La Repubblica”.

Mattarella disse que o clima político é de “serenidade e respeito recíproco”. A meta do presidente, segundo fontes, era evitar trazer mais instabilidade ao país no contexto da atual crise na zona do euro. 

De acordo com analistas, a derrota de Renzi, do Partido Democrático (PD), de centro-esquerda, é um sinal de que os italianos não estão satisfeitos com as atuais governanças do bloco europeu. E, embora não queiram chegar ao extremo de deixar a UE, pedem uma profunda transformação: mudanças no sistema de proteção social, mais atenção às políticas de trabalho e menos mecanismos de defesa para os bancos e especuladores financeiros. Hoje, a Itália se vê diante de altos índices de desemprego, que incentivam os clamores de revolta contra a política tradicional, vindos, sobretudo, do jovem Movimento Cinco Estrelas (M5S), a segunda maior força no Parlamento.

O professor Mattia Guidi, cientista político da Universidade LUISS, em Roma, explica que, pelas pesquisas, o resultado do referendo não foi uma surpresa. Mas o que surpreendeu foi a sua proporção, muito acima das intenções de voto. O índice de rejeição a Renzi acabou por surpreender até mesmo o premier, que disse aos seus aliados que não acreditava ser “tão odiado assim”.

— Ninguém previa uma diferença tão grande e isso provavelmente aconteceu por causa do grande comparecimento às urnas. O referendo foi visto pela população como um grande plebiscito sobre Renzi — explica Guidi.

DESAFIOS À EUROPA
É neste mesmo clima de insatisfação que ecoam os discursos populistas em diversas nações europeias, incluindo, muitas vezes, retóricas xenófobas da extrema-direita nos países mais afetados pela crise migratória. Não foi à toa que, rapidamente, a líder da francesa Frente Nacional, Marine Le Pen, comemorou o resultado das urnas no referendo italiano e o atribuiu ao seu colega da Liga Norte, Matteo Salvini. As duas legendas são, atualmente, aliadas no Parlamento Europeu e dividem fortes discursos anti-imigração. “Os italianos repudiaram a UE e Renzi. É necessário escutar essa sede de liberdade das nações e de autodefesa!”, escreveu Le Pen nas redes sociais. “Parabéns ao meu amigo Matteo Salvini por esta vitória do Não.”

Os parabéns também vieram do líder do xenófobo Partido da Liberdade, Geert Wilders, da Holanda. 

E o próprio Salvini fez uma comemoração bastante expressiva: “Viva Trump, viva Putin, viva Le Pen e viva a Liga!”, em referência à recente vitória do republicano Donald Trump nas eleições americanas de novembro.

O professor Ennio Triggiani, diretor do Departamento de Ciências Políticas da Universidade de Bari, explica que, embora o voto dos italianos tenha sido movido por questões internas, o referendo afetará a posição de Roma na política europeia. Mas não acredita numa crise para a zona do euro:

— Hoje, se abre um problema na Europa: o avanço dos populismos e nacionalismos. Com eleições em França, Alemanha e Holanda no ano que vem, seria preferível um governo italiano forte e estável, que daria ao país um papel maior no contexto europeu. É um efeito negativo do referendo para a Itália.

Dentre as especulações sobre o que o presidente Mattarella definirá, a hipótese mais provável é a formação de um governo tecnocrático, com um novo líder apoiado pela maioria de centro-esquerda do Parlamento. Dentre os nomes mais cotados, estão o Presidente do Senado, Pietro Grasso, e o ministro das Finanças, Pier Carlo Padoan.

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