domingo, 18 de dezembro de 2016

Uma reação perigosa – Editorial / O Estado de S. Paulo

Não raro, o distanciamento da sociedade em relação à política é apontado como elemento de risco para a democracia. O bom andamento da vida institucional e social exige que a população se preocupe com a coisa pública. Por exemplo, é sinal de vitalidade que uma sociedade não se acostume com os escândalos de corrupção e exija providências saneadoras das autoridades competentes.

No Brasil, no entanto, tem havido outra espécie de atitude – diametralmente oposta à apatia – que também traz sérios riscos à democracia. Trata-se da reação desmedidamente apaixonada aos vários acontecimentos da vida pública.

Avessas a maiores reflexões, as pessoas que se rendem a essa atitude agem com exaltação semelhante à que precede os linchamentos – no caso, morais –, deixando mais do que claro que exigem que lhes seja entregue o escalpo de quem se envolveu nos casos de corrupção. Essa é a única resposta adequada que acham que as instituições devem dar a seus reclamos. Menos que isso seria sinal de nefasto conluio com a impunidade. Nesse tipo de reação, não há meio-termo nem tampouco paciência – tudo deve ser imediata e radicalmente resolvido, como num passe de mágica.


Essa reação apaixonada não permite que se façam ponderações sobre os meios utilizados no combate ao ilícito. A imediata solução é sempre o único dado importante, e pouco importa se a ilicitude da investigação ou do processo vicia toda a apuração e assemelha investigadores e investigados. Quem assim age se esquece de que a falsa superioridade moral é parente da brutalidade e a brutalidade é irmã siamesa do arbítrio.

Longe de ser mero formalismo jurídico, a ponderação sobre a licitude dos meios é absolutamente necessária num Estado Democrático de Direito. E a observação desse fato não é uma obrigação apenas das autoridades que investigam, processam e julgam. É também dever de cada cidadão, como fiscal da lei e interessado maior no cumprimento do bom direito. Abdica desse dever quem se dispõe a passar de cidadão a justiceiro. O respeito aos procedimentos legais não é desculpa para a impunidade – ele protege importantes direitos e garantias individuais de todos os cidadãos. Já o arbítrio é sinônimo de vigência da lei do mais forte.

É lógico que se queira a punição dos corruptos. Mas é justamente porque devemos ser intolerantes com o ilícito que é imprescindível não ceder ao arbítrio. Só se chega à justiça e à liberdade pela submissão à lei.

Ainda que a reação desmedidamente apaixonada diante dos últimos acontecimentos possa parecer eficiente e decisiva – afinal, calam-se os raciocínios e as vozes que poderiam introduzir eventuais dúvidas –, ela é negativa e contraproducente. Concentra nossa atenção no alvo errado.
Ouvem-se, por exemplo, muitos gritos clamando pela cassação de um político envolvido em denúncias de corrupção, mas depois poucas vozes pedem mudanças no processo de definição dos candidatos pelos partidos.

Ora, a política não é corrupta nem o sistema político conduz inexoravelmente à corrupção. Corruptos são os que se aproveitam da política e das instituições para enriquecer ilicitamente. Com ou sem eles, o exercício da política continua sendo imprescindível para a vida em sociedade. E cada cidadão é diretamente responsável pela pureza do sistema. É o eleitor quem elege os corruptos – e dessa responsabilidade não pode se livrar. Os casos se repetem.

Exige-se a cabeça dos corruptos eleitos quando um escândalo é revelado, mas depois, quando os partidos indicam seus candidatos ou chega a hora da eleição, lá está o mesmo delinquente consagrado pelo voto popular. Renan Calheiros não está em seu primeiro mandato. Paulo Maluf, que construiu longa história, continua no Parlamento.

É desagradável enumerar essas verdades. Mas as reações exacerbadas não solucionam problemas. Antes os descaracterizam e agravam. A exaltação, a histeria, o alarmismo são causas de desequilíbrio institucional tão sérias quanto a própria corrupção.

Nesse ambiente de obnubilamento das consciências e exacerbação das vontades, a culpa é sempre dos outros. Esquece-se, assim, que a democracia se baseia justamente no princípio oposto – a responsabilidade pela melhora da sociedade começa sempre em cada um, não no coletivo anônimo e quase sempre irresponsável.

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