Por Cristian Klein – Valor Econômico
RIO - A grande diferença entre os pedidos de impeachment do ex-presidente Fernando Collor e da presidente Dilma Rousseff está no apoio político, diz o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Sydney Sanches, que presidiu no Senado, em 1992, o julgamento do impedimento de Collor.
Dilma conta com a sustentação de seu partido, o PT, de parcelas do PMDB e outros aliados, enquanto Collor estava muito isolado - pertencia à época ao minúsculo PRN. Para se obter os dois terços na Câmara e no Senado necessários ao impeachment "não vai ser tão fácil", prevê.
Por outro lado, Sanches, hoje com 82 anos, diz que haveria razões para imputar a Dilma crime de responsabilidade. No ano passado, foi convidado pela oposição para redigir parecer favorável ao impeachment e se recusou, por entender que não havia motivos. Agora, considera que as pedaladas fiscais podem ser improbidade administrativa, pois se repetiram no atual mandato. Ressalta, no entanto, que julgamento de impeachment é eminentemente político.
Ex-ministro diz que impeachment tem fundamento jurídico
Para o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Sydney Sanches - que presidiu o julgamento do impeachment de Fernando Collor, em 1992, no Senado - a grande diferença entre o caso do ex-presidente e o da atual, Dilma Rousseff, é o apoio político. Collor estava numa posição de muito isolamento e pertencia à época ao minúsculo PRN. Já Dilma conta com a sustentação de seu partido, o PT, de parcelas do PMDB, e de outros aliados. "Para se obter dois terços na Câmara e no Senado, não vai ser tão fácil assim", prevê.
Por outro lado, o ex-ministro diz que haveria razões para imputar à Dilma crime de responsabilidade. Aos 82 anos, Sanches ainda tem tempo de mudar de opinião. No ano passado, foi convidado pela oposição para redigir um parecer favorável ao impeachment, mas se recusou, por entender que não havia motivos.
Agora, considera que as pedaladas fiscais podem ser classificadas como improbidade administrativa, pois se repetiram no atual mandato. Ressalta, no entanto, que o julgamento do impeachment é eminentemente político e não jurídico.
Sanches comenta a atuação do juiz Sérgio Moro, a quem evita criticar pela condução das investigações da Lava-Jato que envolvem o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Diz que Moro teria sido mais prudente se não tivesse divulgado as conversas telefônicas grampeadas entre Lula e Dilma, e que, no lugar do juiz, teria remetido o caso diretamente para o STF, uma vez que a presidente tem foro privilegiado.
Sanches entende que o conteúdo das gravações, em que Dilma trata da nomeação de Lula para a Casa Civil, pode ser considerado uma obstrução à Justiça, pela tentativa de escapar da jurisdição de Sérgio Moro. Para o ex-ministro, porém, o juiz federal errou quando determinou que Lula prestasse depoimento, de modo forçado, pois o ex-presidente não havia se negado anteriormente a comparecer à Justiça. "Realmente, eu acho que não era caso de condução coercitiva", diz.
A seguir, leia os principais trechos da entrevista concedida ao Valor:
Valor: Qual é a grande diferença entre os processos de impeachment contra Dilma e Collor?
Sydney Sanches: É que o ex-presidente Collor estava completamente sem apoio na Câmara e no Senado. Tanto que os dois terços foram obtidos com alguma facilidade nas duas Casas. Nos últimos tempos, ele estava sem nenhum defensor de partido. Conseguiu três votos de senadores. A presidente ainda tem o partido [PT] a apoiando. E ainda tem parte do PMDB e também alguns partidos aliados. De maneira que, para se obter dois terços na Câmara e no Senado, não vai ser tão fácil assim. Basta um voto de diferença, dois terços menos um, para impedir tanto a autorização pela Câmara quanto a condenação pelo Senado.
Valor: O sr. acha que o pedido tem embasamento jurídico?
Sanches: Pelo que entendi, diz respeito às pedaladas fiscais. Para mim não deixa de ser uma improbidade administrativa. Agora, é preciso não esquecer que os julgamentos na Câmara e no Senado são políticos. Até a avaliação do crime de responsabilidade é uma avaliação política, e não jurídica.
Valor: O que o sr. achou do episódio do grampo e da divulgação das conversas entre Lula e Dilma pelo juiz Sérgio Moro?
Sanches: De certa forma, implicitamente, ele aprovou o prosseguimento da interceptação, embora antes tivesse determinado a interrupção. Quando ele viu uma matéria tão importante quanto aquela, ele achou que retirar dos autos não seria prudente. A dúvida que surgiu é se ele deveria ter parado nisso, se deveria ter divulgado ou não. Ele teria sido mais prudente se se limitasse a admitir a prova nos autos e remeter o processo para o Supremo, que decidiria se mantinha ou não a prova, se a consideraria válida ou não. Evitaria toda essa polêmica.
Valor: Mas ele agiu bem ou mal na divulgação das gravações?
Sanches: Ele poderia ter evitado. Afinal de contas surgiu a dúvida aí, porque se a investigação atingir também a presidenta - era um diálogo entre ela e o investigado - aí teria, com mais cautela, que remeter os autos ao plenário [do Supremo], sem divulgar. Apenas fazendo constar que, havendo menção ao nome da presidente, remetia os autos ao STF. Isso é o que eu faria se estivesse no caso. Mas não o critico não, porque deve estar com tanta coisa na cabeça. Para o país foi mais interessante que ele tenha mantido, e o Supremo vai dizer se a prova é válida ou não.
• "Pedalada fiscal não deixa de ser improbidade administrativa, mas é preciso não esquecer que julgamento é político"
Valor: Com essa atitude, ele não extrapolou a função de juiz, ao criar um fato político, com o objetivo de influenciar a opinião pública?
Sanches: Se der uma interpretação estritamente técnica, teria que anular a prova, porque foi colhida por autoridade incompetente - ou entender que a autoridade era competente e o fato de ter havido diálogo entre a presidente e ele [Lula] não afeta a validade da prova. Porque quem tem que dizer, se a prova é válida ou não, não é o juiz de Curitiba. É o STF, uma vez que surgiu o nome da presidente.
Valor: Não é uma regra remeter os casos para o Supremo quando envolvem pessoas com foro?
Sanches: Quando, em qualquer prova que se está colhendo, surge o nome do presidente da República, o juiz deve remeter o processo ao Supremo. O juiz não pode presidir mais. Sua competência cessa neste momento. Por isso digo que teria sido mais prudente se ele [Moro] não divulgasse, não autorizasse a publicação.
Valor: É uma questão de imprudência ou de equívoco?
Sanches: Por isso é que digo que eu teria feito assim: teria remetido [ao STF], sem divulgar.
Valor: Qual é a tendência do STF?
Sanches: Não faço ideia, cabeça de juiz você sabe como é. Eu consideraria válida a prova.
Valor: E como o sr. vê o conteúdo da gravação?
Sanches: Se essa prova tivesse sido produzida no STF, estaria comprometendo também a presidente da República, pois estava prometendo a ele [Lula] tomar providências para que não corresse o risco de ser preso.
Valor: Isso pode ser considerado obstrução à Justiça?
Sanches: Pode ser considerado também fraude processual, mas principalmente obstrução à Justiça, porque de certa forma está procurando alterar a competência do juízo, tirando do primeiro grau para o Supremo, pelo expediente de nomear alguém [como ministro].
Valor: Mas o STF não tem condição de analisar o caso, ainda mais de repercussão política nacional?
Sanches: É obstrução à Justiça, mas é mais fraude processual mesmo, na minha opinião. Acaba influindo no órgão judiciário.
Valor: Então Dilma pode ser alvo do mesmo tipo de punição que o senador Delcídio do Amaral, que foi preso por obstrução de Justiça?
Sanches: Mas é claro, se se caracterizar essa hipótese. Agora, no Delcídio ficou bem mais claro. Porque o propósito dele era fazer com que aquele acusado [Nestor Cerveró] saísse do país. Era mais grave, mais claro. Ao passo que no caso dela [Dilma], pode-se dizer "Ah não, ela quis dar chance de um ex-presidente fazer o que ela não estava conseguindo fazer. Ela pode ter agido com boa fé, e não com aquela malícia de alterar a competência". Sempre haveria uma tese a ser defendida.
Valor: Como decidir então?
Sanches: Por isso é que eu digo que vai da cabeça do juiz. Um pode achar que o propósito dela não foi o de alterar a competência, mas apenas uma tentativa da presidente de encontrar uma solução melhor para o país. Cada um vê de um jeito. Eu acho que foi uma manobra para alterar a competência. O juiz de Curitiba vem decretando prisões, uma em cima da outra, inclusive aquela condução coercitiva. Não sei se ele estava propenso a decretar a prisão de Lula, mas havia essa possibilidade.
• "Condução coercitiva de Lula foi precipitada. Sempre caberá a alegação de que houve ilegalidade"
Valor: O que o sr. achou da condução coercitiva, que gerou forte reação contrária?
Sanches: Realmente, eu acho que não era caso de condução coercitiva. Nas outras vezes em que ele [Lula] foi intimado, ele compareceu. Foi precipitada, poderia ter sido evitada. Sempre caberá a alegação de que nisso houve ilegalidade.
Valor: Há um exagero na atuação do juiz Sérgio Moro?
Sanches: Isso foi na condução coercitiva. Com relação a outras coisas eu não sei dizer, porque precisaria conhecer os autos.
Valor: No ano passado, o sr. foi convidado a fazer um parecer pelo impeachment. Por que recusou?
Sanches: É que eu ainda não estava convencido de que tinha ocorrido alguma hipótese de crime de responsabilidade.
Valor: O que mudou?
Sanches: Uma dúvida que surgiu é que a pedalada teria ocorrido no mandato anterior, mas parece que se repetiu no mandato atual. Agora, o impeachment é um processo político-partidário. O senador não é obrigado a fundamentar o voto. Na essência você vê que a motivação é política, não é jurídica.
Valor: Como fica então a noção de Justiça num país conflagrado como o Brasil está?
Sanches: Olha, a avaliação política é autorizada pela Constituição, porque diz que o órgão competente é o Senado - e a Câmara. Por isso é que exige dois terços. O Supremo só pode interferir para dizer se o acusado teve seus direitos garantidos, o devido processo legal, a ampla defesa, com produção de provas...
Valor: Mas o Supremo também não resolve questões jurídicas de forma política?
Sanches: Bom, isso é uma avaliação que se faz. Eu me limitava a soluções jurídicas. [Mas imaginar] que o juiz não tenha opinião política não é verdade. O juiz também vota. Então, ele tem preferência por esse ou aquele partido, por esse ou aquele candidato. Eu sempre votei e nunca tive militância partidária, e não tenho até hoje.
Valor: O sr. acha que o ministro Gilmar Mendes, próximo de políticos do PSDB, deveria se dizer impedido em casos envolvendo o PT?
Sanches: Bom, sobre isso eu não quero falar.
Valor: O Supremo deve julgar de forma mais política quando há risco de convulsão social, como se seguiu à condução coercitiva de Lula?
Sanches: Quem praticou foi o juiz de primeira instância. Isso quem pode resolver é o Conselho Nacional de Justiça, ou antes disso, o Conselho da Justiça Federal - não é o Supremo Tribunal Federal.
Valor: O sr. acha que, com a polarização do país, o Supremo deveria ter um papel de moderador, de não botar lenha na fogueira?
Sanches: Eu acho que ele está tendo. Tem tido muito cuidado. Veja bem que a decisão com relação à questão da Câmara, daquele problema de composição da comissão [do impeachment], decidiu segundo sua convicção jurídica. E isso, para o governo, foi melhor. Depende de quem está vendo as soluções. Para uns a solução foi política; para quem está vendo de outro ângulo, a posição foi jurídica. Eu me lembro que, sempre que passava processos nas minhas mãos, o que não queria solução jurídica queria solução política, e o que sabia que não tinha razão queria solução política e não jurídica. O que demonstra que a pessoa não quer perder nunca. E o juiz fica dividido: devo ser político, aqui, ou devo ser jurídico?
Valor: Qual deve ser o papel do Supremo durante a crise atual?
Sanches: O que a história mostra é que o Supremo sempre foi o poder moderador, que às vezes dá solução favorável ao Executivo, às vezes ao Legislativo, e às vezes estritamente com motivação jurídica, mas que no fundo acaba sendo uma posição, no sentido amplo do termo, e mais nobre, de um moderador - porque também não está lá para botar gasolina na fogueira. Mas isso está certo? É aquela velha história: quem tem razão quer que a solução seja jurídica, quem não tem quer que seja política. E aí fica o tribunal dividido. Como é que faz? Tenho que pensar no país ou tenho que pensar no caso concreto? O país tem que ser governado ou pode continuar desgovernado? É difícil dizer qual é a melhor solução, se a política ou a jurídica. O Supremo deve ser fiel à sua história: um moderador.