segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

Parlamentarismo branco e farofa carioca - Cristian Klein

- Valor Econômico

• Crise aumentou poder do Congresso e da lógica política do Rio

A política local recomeçou seu ciclo com as posses dos prefeitos e traz um recado das urnas contraditório. Há renovação, reforçada pela emersão de nomes fora da política em duas das três maiores capitais - o empresário e apresentador de TV João Doria (PSDB) em São Paulo e o também empresário e ex-dirigente de futebol Alexandre Kalil (PHS) em Belo Horizonte. Mas há conservadorismo e continuidade na escolha de 15 dos 26 prefeitos de grandes centros que se reelegeram a despeito da grave crise econômica nacional.

Entre os 11 "novos" prefeitos, três são velhos conhecidos em suas cidades e já exerceram o cargo (Iris Rezende, PMDB, em Goiânia; Edvaldo Nogueira PCdoB, em Aracaju; e Rafael Greca, PMN, em Curitiba). Dos oito restantes, apenas Doria, Kalil e o prefeito de Porto Velho, Dr. Hildon (PSDB) - ex-promotor de Justiça e dono de uma rede de ensino -, não tinham carreira política prévia.

A ascensão de Doria, mais do que o triunfo da individualidade ou da antipolítica, reflete uma conjuntura partidária e uma correlação de forças específica. É a amostra representativa do principal resultado agregado das eleições municipais, com o crescimento do PSDB e o definhamento do PT. A antipolítica, muitas vezes, é uma estratégia - de sobrevivência ou de expansão - da própria política. Doria não seria prefeito sem a maquinação do governador Geraldo Alckmin. E a partir da posse deixa de ser um não político, um outsider.

A política e os partidos - que têm o monopólio da representação no Brasil - dão e retiram apoio. Em Vitória, Amaro Neto (SD), um deputado estadual conhecido pelo histrionismo como apresentador de um programa policial de TV, perdeu fôlego na reta final. Viu o adversário, Luciano Rezende (PPS), manter o posto com a adesão de integrantes do grupo político do governador, que incentivara sua candidatura contra o prefeito.

O novo é atraente, mas a tendência conservadora ainda deu o tom nos municípios. É algo a se levar em conta quando se fazem previsões sobre a eleição presidencial. O cenário nacional talvez esteja menos propenso a novidades absolutas - como Jair Bolsonaro, Roberto Justus, Joaquim Barbosa, Sérgio Moro - do que a nomes que já circulam com recall e/ou estrutura partidária ao Planalto: Ciro Gomes (PDT), Marina Silva (Rede), Lula (PT), Aécio (PSDB) e Alckmin, por dentro ou fora do ninho tucano.

Com as divisões internas do PSDB e o impedimento ou rejeição à candidatura Lula/PT, os dois polos que definem o padrão de competição política nacional há 22 anos estão sob ameaça. O esgotamento da polarização pode abrir espaço para uma novidade - não absoluta, radical, antipolítica ou desconhecida, mas uma novidade relativa.

Marina Silva e, em menor extensão, Ciro Gomes podem emular a trajetória do prefeito do Rio Marcelo Crivella (PRB), representante de um pequeno partido que se tornou eterno candidato em disputas majoritárias desde que chegou ao Senado em 2003. Crivella venceu pelo cansaço. A fadiga do PMDB do Rio é comparável à do PT em nível nacional.

O padrão de competição fluminense ainda é muito menos estruturado do que o brasileiro. Há mais figuras notáveis e populares - Crivella, Garotinho, Romário - do que um grupo político claro em torno de partidos, exceto ao redor do PMDB, que desidrata e perde hegemonia, com o colapso das finanças estaduais. A derrota na capital tem grande probabilidade de se espraiar pelo interior, em 2018, embora seja difícil prever quem será o beneficiário. Pode ser até Eduardo Paes, agora ex-prefeito, que para se viabilizar eleitoralmente não descarta sair do PMDB.

A oposição no Rio é fragmentada, não se vertebra. A brasileira, aos poucos, segue o mesmo caminho, se invertebra. Em ambos os campos, a família Bolsonaro - linha de frente da extrema-direita - já extrai um naco de mais de 10% do eleitorado.

A política nacional pós-Plano Real é um simulacro da polarização política paulista. Em termos marxistas, é uma superestrutura a refletir a estrutura econômica e as relações de produção de São Paulo. O desmantelamento deste padrão torna o sistema partidário mais semelhante ao do Rio de Janeiro, com todas as suas peculiaridades.

Não é uma mera coincidência o fato de que políticos do Estado tenham ganho cada vez mais destaque desde o início da desestabilização do padrão de competição vigente. Foi no enfraquecimento do governo do PT, mas também da oposição - à frente o PSDB, hoje refeito, porém dividido - que Eduardo Cunha (PMDB) arregimentou e se tornou o general de uma poderosa tropa parlamentar suprapartidária, ainda que mercenária. O clã Picciani - o pai Jorge, cacique estadual, e o filho Leonardo, ministro e ex-líder da bancada federal pemedebista - deram sustentação a Dilma Rousseff até não resistirem mais. Aos Maias - o ex-prefeito Cesar e o filho Rodrigo, presidente da Câmara - cabe hoje papel semelhante em relação a Michel Temer.

Na combalida oposição do PT, é o senador Lindbergh Farias a voz mais alta. Na oposição com viço do Rede e do PSOL - que tem sua maior expressão eleitoral no Rio, onde emerge como a nova esquerda - destacam-se veteranos como Chico Alencar e Miro Teixeira (autor de PEC para eleições diretas a presidente, caso Temer seja afastado) e os jovens Alessandro Molon e Jean Wyllys.

Este último, por sinal, tornou-se o antípoda de Bolsonaro quanto à defesa de ideias no campo dos valores - embate que ganhou proporções inéditas no debate nacional.

O aumento do peso do Congresso (em essência estadualizado e centrífugo) em relação ao Executivo (tradicionalmente paulicêntrico e centrípeto) é um dos efeitos da atual crise política. No parlamentarismo branco em curso, a lógica e as expressões do Rio - segunda maior bancada federal e a maior do PMDB, legenda que fura a polarização PT x PSDB - ganharam espaço. Observar a política fluminense pode dar uma pista de como se dará a ligação entre as políticas local, regional e a nacional.

No cardápio, além de coxinhas e mortadelas, oferta-se uma farofa recheada, carioca, como a entregue por Crivella, onde cabem direitistas ferrenhos, ex-radicais de esquerda, pastores, militares, sambistas e yuppies.

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