domingo, 1 de janeiro de 2017

Um país a inventar - José de Souza Martins

- O Estado de S. Paulo | Aliás

• O Brasil não é isso que está aí. A obra e a vida dos intelectuais, dos cientistas e dos trabalhadores podem trazer de volta os anseios de construir, em vez de só demolir

Num momento como este, de graves tensões políticas, sociais e econômicas, que propõem a passagem de ano fora dos marcos da tradição e do costume, nós nos defrontamos com um abismo de incertezas, impróprias para o rito das travessias simbólicas que dão sentido à vida com esperança.

No balanço do ano civil que acabou, há débitos enormes que dificilmente serão pagos no ano que começa. Perdemos a compostura política e perdemos o sentido da honra na política, basicamente porque a perdemos de vista e chegamos ao absurdo de achar que a política é um estorvo, que seria melhor acabar com ela. Sem política as sociedades não existem nem podem existir. Confundimos política com políticos.

Este foi mais um ano de perdas para o Brasil. Nossa grande perda foi a do autoaniquilamento do Partido dos Trabalhadores, que arrastou consigo boa parte do nosso sistema partidário. Porque, mais do que a imensa maioria dos partidos políticos brasileiros, o PT nasceu para cumprir uma função histórica que nenhum outro poderia cumprir. Ele poderia ter sido o grande canal de expressão daquela parcela da população que a história condenara ao silêncio. Mas partidarizou sem politizar, incluiu sem democratizar, anexou os diferentes sem gestar o direito à diferença. O PT foi vitimado pelos equívocos e ambições das facções de militantes mais escravas da ideologia do que ativistas do historicamente possível. Sucumbiu à incapacidade de consumar a ruptura histórica que alardeara em sua ascensão ao poder. Revelou-se igual aos partidos que abomina. Negou-se, mergulhando na conciliação com o crônico conformismo da história política brasileira. Optou pela mera hegemonia, mais para desfrutar do que para governar. Para opor-se ao PSDB, que equivocadamente elegeu como inimigo seu e dos pobres, ainda que formados ambos da mesma matéria-prima social-democrática, associou-se à direita e ao oligarquismo retrógrado. O qual, com essa aliança, se fortaleceu para, no final, cuspir do casulo do poder o parasita oportunista e ingênuo, o PT.

Seu suposto socialismo, sem referências teóricas consistentes, não levou em conta que o mandato da transformação política só é legítimo em resposta a carências radicais. Um país carente, como este, que, no entanto, já não tem carências radicais, tem se movido ficticiamente com base nas motivações superficiais das frases feitas, da imitação e da mímica. Os atores se repetem, como se viu na retórica de ambulante que caracterizou tanto a melancólica defesa petista do mandato de Dilma Rousseff quanto a recente oposição ao iníquo e enganador projeto de reforma da previdência. Mais para acusar do que para propor. Tudo igual à fragilidade da retórica do atual governo na apresentação de suas reformas econômicas sem conteúdos sociais.

As épocas não terminam no fim do ano. Terminam na difusa consciência de que algo se perde e acaba e de que algo não muito claro começa. Um longo ano desconhecido começou nas manifestações de rua de 2013 e ainda não terminou nem terminará tão cedo. Talvez encontre seu término em 31 de dezembro de 2018. Só então poderemos falar em ano novo, no sentido histórico de um tempo novo.

Até lá continuaremos nesse ano longo e inconcluso que estamos vivendo, o ano cinzento e sem fim, o ano da incerteza. Muita coisa foi demolida ao longo desse ano de mais de mil dias, muita gente que se achava poderosa caiu e ainda não se deu conta da queda. Uma presidente da República teve o mandato cassado, um poderoso presidente da Câmara está preso, um poderosíssimo presidente do Senado e do Congresso teve as prerrogativas de poder castradas, reduzidas à metade. Gente que se achava acima da lei foi e está sendo presa, investigada, julgada, condenada. Ricos e poderosos na cadeia podem ser um sinal demarcatório de uma nova e inesperada era. Há uma convulsão nas instituições até aqui subjugadas pelo oligarquismo e o poder pessoal dos régulos de província. Resta saber o que colocaremos no lugar, que novo Brasil vamos inventar, com qual matéria-prima. Não há, na situação atual, nenhum sinal de consciência e de criatividade política, apenas cópia e repetição, muito imaginário e nenhuma imaginação. Nem na rua.

Desde 2013, somos apenas contra. Não somos a favor de nada. Tanto antes da queda de Dilma Rousseff quanto depois da ascensão de Temer, somos contra. Os grupos apenas mudam de lado. Não percebemos que o sistema partidário derreteu, que, na prática, já não há partidos políticos. Há figuras residuais que substituem os partidos, ocas de utopia, doutrina e projeto histórico. Os partidos já não protagonizam a política. Os grupos de interesse usurparam-lhes as funções. Tanto nas ruas quanto no Congresso Nacional, quanto no Poder Executivo e mesmo no Judiciário, as funções institucionais foram substituídas pelos demolidores. Há exceções que, no entanto, não geram protagonismo de renovação. Nas ruas, os quebradores de portas e vidraças, os apedrejadores, os queimadores de ônibus, tanto de esquerda quanto de direita, não têm um projeto de nação. São apenas contra. Não têm ideias, têm apenas raiva. Em todas essas manifestações, o Brasil que sobra é o Brasil arcaico. O Brasil cujo futuro é prisioneiro do passado.

Seria decepcionante, nesta hora litúrgica, se o País se ativesse aos aspectos mais irracionais da história de agora. O Brasil não é isso que está aí. Ele é sobretudo o que não se vê, mas se faz. Infelizmente, a corrupção e os oportunismos da política, as vulgaridades, têm mais visibilidade do que a obra e a vida dos intelectuais, dos artistas, dos poetas, dos cientistas e dos próprios trabalhadores. No entanto são essas vidas e essas obras que no silêncio que lhes é próprio dizem que estamos vivos. Em 2016, brasileiros fizeram poesia, incrementaram as artes, colocaram nossa ciência em destaque, universidades como a USP estão no topo da lista das congêneres latino-americanas, ainda que haja quem queira demoli-las ou minimizá-las com critérios de botequim de esquina.
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José de Souza Martins, sociólogo, membro do Conselho Superior da Fapesp e da Academia Paulista de Letras

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