terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Um verdadeiro tiro no pé - José Márcio Camargo

- O Estado de S. Paulo

O crédito é uma das instituições mais importantes para o bom funcionamento de uma economia de mercado. Ele permite aos agentes econômicos (famílias, empresas ou governos) antecipar renda esperada no futuro, aliviando suas restrições orçamentárias. O bom funcionamento deste mercado é uma condição essencial para o crescimento da economia, para a geração de emprego e renda e para a redução da desigualdade de oportunidades.

No mercado de crédito o pagamento do bem adquirido (crédito) é feito no futuro, o que introduz um importante elemento de incerteza quanto ao cumprimento do contrato. Se as instituições forem tais que os devedores não têm o incentivo para pagar os credores, estes últimos não se disporão a ofertar crédito e o mercado entra em colapso. Em outras palavras, este mercado só funciona se os credores efetivamente acreditarem que o crédito será pago.

Diante disso, a regra básica para a existência deste mercado é que o custo de não pagar o empréstimo seja maior que o custo de pagar. Se o custo de pagar for maior que o custo de não pagar, os incentivos serão para que o tomador do crédito não o pague. Para que essa regra seja cumprida, o emprestador exige um colateral, ou seja, uma garantia. Caso o tomador do empréstimo decida, por alguma razão, não pagar, o emprestador poderá se apropriar do colateral para quitar o empréstimo.

Essa regra tem de ser aplicada a todos, pobres ou ricos, e independentemente da razão da inadimplência, falta de recursos (falência, desemprego, pobreza, etc.) ou oportunismo. Caso contrário, as instituições financeiras se recusarão a dar crédito aos grupos que não são restritos pela regra, excluindo-os deste mercado.

Numa democracia, a legislação e o Poder Judiciário definem a probabilidade de o emprestador se apropriar do colateral, caso o tomador não honre o pagamento da dívida (executar o colateral). Quanto mais difícil for executar o colateral, menor será o custo de não pagar o empréstimo, maior o incentivo para não pagar, menor a oferta de crédito, maior a taxa de juros e menos acesso terá a população ao crédito.

Como o colateral é uma riqueza e, por definição, quanto mais pobre o agente, menos riqueza tem, um Poder Judiciário leniente com o mau pagador reduz o acesso principalmente dos pobres ao mercado de crédito. Portanto, quanto mais leniente a sociedade e, em especial, o Judiciário, com o mau pagador, menos acesso os pobres terão ao mercado de crédito e maior a desigualdade de oportunidades na sociedade. Um Judiciário rigoroso com o mau pagador é fundamental para assegurar justiça social.

Um exemplo deste efeito do Poder Judiciário sobre o mercado de crédito no Brasil era a quase inexistência de crédito para a compra de casa própria antes da instituição da figura da alienação fiduciária. Se a pessoa tinha apenas um imóvel, a Justiça não permitia que este fosse executado pelo credor em caso de inadimplência. Consequentemente, não podia ser utilizado como colateral, o que inibia os empréstimos para a compra do primeiro imóvel. Somente famílias que já tinham imóveis ou que já tinham poupança suficiente conseguiam comprar sua casa própria. Não existia o mercado de crédito para o primeiro imóvel.

A liminar concedida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) que proibiu o governo federal de executar as garantias dadas à União por empréstimos tomados pelo Estado do Rio de Janeiro, caso não seja revertida, irá forçar a União a não dar garantias para os Estados tomarem novos empréstimos, excluindo todos os Estados do mercado de crédito. Um verdadeiro tiro no pé.
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Professor do departamento de economia da Puc/Rio, é economista da Opus Gestão de Recursos

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