segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Discrepância entre suas duas almas faz governo Temer se distanciar da sociedade - Marco Aurélio Nogueira

- O Estado de S. Paulo

De mau-passo em mau-passo, o governo Temer parece ter optado por jogar ao mar talvez o mais importante recurso de que dispõe para chegar ao porto seguro de 2018. Ao longo de alguns poucos dias, fez opções arriscadas demais e, também por isso, equivocadas.

Do começo do ano para cá, o governo recebeu de bandeja uma sucessão de boas notícias, com as quais poderia melhorar sua imagem e seu relacionamento com a sociedade. Ganhou estabilidade, com uma base de apoio de cerca de 80% do Congresso Nacional, a eleição para a presidência da Câmara e do Senado de parlamentares que o apoiam. A inflação passou a dar mostras de que poderá voltará a ficar sob controle e até a economia entrou em uma fase de melhoria, com câmbio favorável, juros caindo, retomada discreta da atividade econômica. Só não houve boa notícia no plano do emprego e da renda.

Eis então que, de repente, o governo começa a exibir, de forma ostensiva, os sinais de que carrega algo de podre no ventre, que está disposto a se deixar devorar por suas próprias entranhas, suas máfias e seus maus hábitos. Desatento aos castigos da História e da sensibilidade humana, ignorante de Maquiavel, passou a debochar da opinião pública, numa sucessão aloprada de pequenos e grandes pecados.

Foi deixando claro que não dispõe da capacidade de lidar com as duas almas de que invariavelmente se compõe todo e qualquer governo democrático. Sua alma técnica chega a funcionar e imprime convites seguidos para a generalização de um ambiente mais “racional” tanto na economia quanto na gestão pública como um todo. Mas a alma política desperta e produz estragos por onde quer que se manifeste.

Fernando Dantas, colunista do Broadcast, diagnosticou a conduta do governo como “esquizofrenia”, que pode levá-lo a uma “situação de risco alto e binário, em que tudo pode dar muito certo ou muito errado”. É uma boa descrição.

Começou assim. Homologadas pelo STF as delações da Odebrecht, o governo fez um ajuste ministerial para acomodar Moreira Franco em um ministério, buscando com isso dar-lhe privilégio de foro. Copiou Dilma, com Lula. Alvo de contestações judiciais, o novo ministro foi preliminarmente confirmado no cargo, mas perdeu foro. Atuação atabalhoada e açodada do governo, que se desgastou com o episódio muito mais do que gostaria.

Na sequencia, indica-se Alexandre de Moraes, do núcleo íntimo da Presidência, para o STF. O candidato pede demissão do ministério e sai em campanha. É conhecido muito mais por suas frases desastradas e seu desejo de exposição do que por uma sabedoria jurídica consolidada. Perante o olhar atônito do País, chegou a navegar no Lago Paranoá com um grupo de senadores sob o pretexto de ser informalmente “sabatinado”. A cena causou espanto e indignação. Até uma suspeita de plágio circulou. O ministério ficou se cabeça, bem no momento em que o fogo se alastra no Espírito Santo e a segurança pública ameaça se tornar o calcanhar de Aquiles da crise atual. Paralelamente, o governo deixar vazar que um antigo amigo do presidente poderá ser convidado para o Ministério da Justiça, trazendo consigo, na bagagem, uma militância encarniçada contra a Lava Jato.

Dá-se então a eleição de Edson Lobão para a presidência da Comissão de Constituição e Justiça do Senado. O governo diz que se tratou de mero procedimento parlamentar, sustentado pelos méritos do senador maranhense. Com ele, chegaram à Comissão – estratégica, por vários motivos – uma plêiade de investigados no escândalo da Petrobrás, suspeitos de abusos, de corrupção e da prática acintosa de caixa 2.

Os detalhes são sórdidos: dos 54 integrantes da Comissão, entre titulares e suplentes, nada menos do que 10 são alvo da Justiça. Pertencem a diferentes partidos: ao lado de peemedebistas como Jader Barbalho (PMDB-PA), Romero Jucá (PMDB-RR) e Renan Calheiros (PMDB-AL), entraram na festa os senadores Fernando Collor (PTC-AL), Gleisi Hoffmann (PT-PR), Lindbergh Farias (PT-RJ) e Humberto Costa (PT-PE). Todos irão sabatinar Alexandre de Moraes, dentre outras coisas.

Lobão é figurinha carimbada. Circula à vontade pelos nichos do poder brasiliense. Foi ministro de Dilma e chega à CCJ com um currículo repleto de menções nas delações premiadas da Lava Jato. É parceiro de Renan Calheiros, que aliás acaba de ser escolhido líder do PMDB no Senado.

Formou-se assim uma turma suprapartidária, uma igrejinha que reúne fiéis de várias igrejas partidárias, todos interessados em uma única coisa: frear a Lava Jato, coibir seu ativismo e desmontar as operações que têm buscado cortar certas práticas escabrosas da política brasileira. A retórica do grupo é variada, oscila entre a esquerda e a direita, mas converge sempre para o mesmo ponto: os políticos precisam se unir para “salvar a política”.

Petistas, tucanos, liberais e peemedebistas juram de pés juntos que não querem acabar com a Lava Jato ou com o juiz Moro, mas somente “corrigir seus excessos”. Julgam-se injustiçados, perseguidos pelo Ministério Público e pela mídia, que não desejam que possam exercer a nobre atividade política, sem a qual não pode haver democracia.

Em entrevista concedida ao Estadão (11/02), Lobão falou sem meias-palavras. Disse que nada deve à Justiça, que está sendo atacado por forças que não querem o bem do povo nem o funcionamento regular das instituições políticas. Sem qualquer vacilo, declarou que fará o que estiver a seu alcance para facilitar a tramitação de uma eventual proposta de anistia ao caixa 2, que, em sua opinião, é uma prática garantida pela Constituição. Também se declarou disposto a contribuir para que se discuta e se vote o projeto sobre abuso de autoridade, cujo relator é seu colega Roberto Requião (PMDB-PR).

Para ele, que integra um grupo de poderosos parlamentares, está em curso um processo de “criminalização da política”. Suas vítimas seriam os políticos como um todo, que hoje são tão perseguidos que já “não suportam mais”. A fraseologia é de Lobão, mas tem sido repetida por muita gente tida como de esquerda: “Se alguém acha que a atividade política está tão ruim assim, ingresse na vida pública para tentar melhorá-la. Agora, destruí-la é que conduz à tirania. Se estigmatizarmos a atividade política e, no passo seguinte, criminalizarmos, estamos debilitando a vida pública. Ao fazê-lo, vamos acabar com o que resta do conceito da política, sem a qual não há democracia. Não havendo democracia, a alternativa é a tirania, que suprime todas as liberdades. Não creio que seja isso o que a sociedade deseja”.

Na opinião de Lobão, a operação Lava Jato – temida por 10 entre 10 parlamentares do País – “virou um inquérito universal. Em que isso vai resultar? Não sei. Não acho que tem de ser extinta, mas conduzir ao ponto em que estamos chegando, da criminalização da vida pública, é o que nos envia para a tirania”.

O senador se vê como vítima: “Temos tido aqui tentativas de corrigir as distorções e não se consegue. Porque a imprensa não aceita, nem a opinião pública. Ou seja, estamos destinados ao calvário, à destruição. Quando digo nós, quero dizer a vida pública”.

O governo assiste a tudo com um sorriso nos lábios. Não move uma palha, não oferece um discurso alternativo que atenue o quadro e que lembre a Lobão que o certo é a classe política e o governo caminharem em sintonia com a opinião pública, ou ao menos tentarem fazer isso. Com isso, passa a imagem de que apoia a “classe política” em seu pleito de que as coisas continuem como sempre foram, com políticos jamais investigados, flanando pelo sistema político com seus foros privilegiados e seus esquemas dedicados a garantir a reprodução do poder.

O governo Temer pode não perceber, mas está usando uma única bala: confrontar a opinião pública e a sociedade para defender a integridade de um governo que só respira porque tem a maioria parlamentar a seu lado. E porque as oposições não sabem o que querem.

É muito pouco e é arriscadíssimo, para ele e para a democracia política brasileira. Sobretudo se for mesmo verdade que o governo pretende fazer avançar a reforma da Previdência e a trabalhista. Não serão só as corporações que resistirão, mas parte expressiva da opinião pública, que terá de ser persuadida e conquistada. Queimando as pontes com ela, o governo corre o risco de ficar sozinho no deserto.

As pessoas não confiam mais em governos. Estão desesperançadas e cansadas da exibição cotidiana de tantos escândalos, tantos privilégios, tanta desfaçatez, tanto dinheiro derramado a título de atividade política. Há muito sangue nos olhos, desigualdade, desejo de vingança e ressentimento, à esquerda e à direita. Não se pode dizer que não hajam motivos. É uma situação para ser enfrentada com determinação e inteligência, de forma inovadora e sem concessões.

Uma alma política deteriorada, entregue a operadores desqualificados, a pessoas com olhos e ouvidos tapados, leais às patotas mas desinteressadas do apoio popular, é o caminho mais curto para que se aprofunde o choque entre Estado e sociedade, que sempre esteve aí mas que agora ameaça fugir do controle.

*Marco Aurélio Nogueira é professor titular de Teoria Política da Unesp

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