sábado, 18 de fevereiro de 2017

Ministro Freire responde duro ao discurso de Raduan Nassar no Prêmio Camões

Mauricio Meireles | Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - Quando Raduan Nassar chegou ao Museu Lasar Segall, na manhã desta sexta-feira (17), para receber o Prêmio Camões, o autor ganhou um abraço do editor Luiz Schwarcz, que disse rindo: "Raduan, chegou o dia! Vai passar rápido!".

Mas devem ter sido longos minutos para Raduan.

Em cerimônias anteriores do Prêmio Camões e em outras semelhantes, o costume é o homenageado fazer ao final o discurso de agradecimento. Era esperado que o autor de "Lavoura Arcaica", crítico notório do governo Temer, fizesse um discurso contundente. E foi o que ocorreu, quando Raduan falou, abrindo a cerimônia, em vez de fechando-a.

Isso permitiu que o ministro Roberto Freire tivesse a última palavra, com uma resposta dura a Raduan, que havia em sua fala acusado o governo de golpista.

O ministro sugeriu que o escritor não deveria aceitar o prêmio, no valor de €100 mil (cerca de R$ 330 mil). Freire nega que o ritual tenha sido invertido pelo Ministério da Cultura.

"É um adversário recebendo um prêmio de um governo que ele considera ilegítimo", disse Freire, debaixo de vaias e gritos de "Fora, Temer" da plateia. "Quem dá prêmio a adversário político não é a ditadura!"

O clima era tenso. Enquanto Freire falava de improviso, deixando de lado o discurso que havia preparado, a plateia o interrompia com protestos. O poeta e professor da USP Augusto Massi dizia ao ministro: "Acho que você não está à altura do evento!".

"Permitimos que o agraciado dissesse o que quisesse e imaginasse", rebateu Freire, que ainda qualificou o protesto do público a favor de Raduan como "histriônico".

"Lamentavelmente, o Brasil assiste hoje a pessoas da nossa geração, que podiam dar testemunhos da sua experiência, que viveram um golpe verdadeiro, dando o inverso de todo esse testemunho", falou o ministro.

Massi lembrou ainda que a obra de Raduan é uma obra política. Em um dos ensaios mais importantes sobre a literatura dele, a crítica Leyla Perrone-Moisés filia o autor ao que chama de uma "literatura de revolta" –e mostra sua relação com o momento político da ditadura militar.

A filósofa Marilena Chaui, também presente, gritou "O silêncio é precioso" e ouviu do ministro que ela estava dizendo aquilo por ser "de classe média" – em referência à ocasião, em 2013, em que a intelectual bradou que odiava a classe média.

O Camões, instituído em 1988 em acordo entre Brasil e Portugal, foi concedido a Raduan 17 dias após Dilma ser afastada pela abertura do processo de impeachment, em maio passado.

CRÍTICAS AO GOVERNO
Em seu discurso de apenas duas páginas, concluído com a frase "O golpe estava consumado. Não há como ficar calado", Raduan fez crítica à política no país.

O primeiro criticado foi o ex-ministro da Justiça Alexandre de Moraes. Raduan acusou Moraes de ser o responsável pela invasão de escolas ocupadas, pela prisão recente de Guilherme Boulos e de "violência contra a oposição democrática" que se manifesta nas ruas.

"Esta figura exótica agora é indicada ao Supremo Tribunal Federal", disse o autor. "Esses fatos configuram por extensão todo um governo repressor. Governo atrelado ao neoliberalismo com sua escandalosa concentração de riqueza."

"Mesmo de exceção, o governo que está aí foi posto, e continua amparado pelo Ministério Público e, de resto, pelo Supremo Tribunal Federal", afirmou o autor, criticando ainda a decisão do STF que permitiu a Moreira Franco virar ministro.

"Em sua decisão, o ministro [Celso de Mello] acrescentou um elogio superlativo a Gilmar Mendes por ter barrado Lula para a Casa Civil. Dois pesos e duas medidas."

Raduan ainda elogiou a ex-presidente Dilma, a quem chamou de íntegra. "Não há como ficar calado", concluiu.

Também presente ao evento, a presidente da Biblioteca Nacional, Helena Severo, dizia ao embaixador de Portugal, Jorge Cabral, ter "sentido vergonha como brasileira" pela situação.

"Acho que não era um momento de luta política, era a entrega de um prêmio literário", afirmou.

Freire afirmou à Folha na saída que resolveu fazer um discurso duro por conta da "deselegância" de Raduan. "Se ele viesse dizer que não aceitava o prêmio, a crítica que ele fez podia até ser justa."

O ministro ainda discutiu com algumas pessoas da plateia antes de deixar o local. Augusto Massi diz ter sido chamado de "idiota" por Freire nessa ocasião.

"Eu não o ofendi, tentei lembrar que o momento era do Raduan. Acho estranho que um político com a história dele marque uma pessoa depois do debate e vá chamar de idiota. Eu não fui ofensivo quando me manifestei", diz Massi.

"Tinha tantos que não foram ali para aplaudir um escritor, foram para [me] agredir, acho que fui até brando", disse à Folha Freire, horas após o evento.

Ele não sabia o nome de Massi, mas o identificou pelo contexto. "Era aquele que tentou de forma histérica me impedir na minha fala. Não me lembro bem [o que discutimos depois], mas isso é normal. Não me arrependo."

OPOSIÇÃO HISTÓRICA
Era previsível que o escritor fosse fazer um discurso político. Em 2016, enquanto o processo de impeachment corria, Raduan fez uma série de aparições públicas em defesa do governo petista, como a vez que foi a Brasília discursar a favor da ex-presidente.

O escritor também publicou um texto na Folha defendendo que a deposição do PT havia sido um golpe.

Após a cerimônia, o Ministério da Cultura divulgou uma nota oficial sobre o ocorrido.

Leia na íntegra:

O Ministério da Cultura lamenta, mais uma vez, a prática do Partido dos Trabalhadores em aparelhar órgãos públicos e organizar ataques para tentar desestabilizar o processo democrático. Durante a cerimônia de entrega do Prêmio Camões de Literatura, em São Paulo, o ministro da Cultura, Roberto Freire, teve sua fala interrompida por manifestantes partidários, sinal de desrespeito à premiação oficial dos governos de Brasil e Portugal.

Considerada a mais importante distinção da Língua Portuguesa, o prêmio concedeu 100 mil euros (sendo 50 mil euros arcados pelo Ministério da Cultura) ao escritor brasileiro Raduan Nassar.

O agraciado foi respeitado por todos durante sua fala, ao contrário do que ocorreu com o ministro da Cultura, interrompido de forma agressiva. Apesar de ser um adversário político do governo, Raduan recebeu o prêmio, legitimando sua importância. Uma premiação literária com essa dimensão não merecia esse comportamento intolerante de alguns, que tentaram partidarizar o evento.

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