quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Temer é o anti-Kirkman - Elio Gaspari

- O Globo

O vice de Dilma batalhou para chegar lá e nada tem a ver com o personagem da série ‘Sobrevivente designado’

As repórteres Simone Iglesias e Catarina Alencastro revelaram que, por sugestão de sua mulher, Marcela, o presidente Michel Temer viu os dez episódios da série “Sobrevivente designado” e gostou.

“Designated survivor”, título original da série da rede ABC, distribuída internacionalmente pela Netflix, conta a história de Tom Kirkman, um irrelevante secretário de Habitação, que acaba presidente dos Estados Unidos depois que um atentado decapitou a cúpula dos Três Poderes do país. Como qualquer freguês, Temer gostou de uma boa série. Kirkman (Kiefer Sutherland) é meio chato, mas sua chatice acaba virando virtude. Enquanto Frank Underwood de “House of Cards” é um vilão que chegou à Casa Branca manipulando pessoas e situações, Kirkman é um bom moço de série de TV. Se Brasília e Washington têm centenas de candidatos a Frank Underwood, as duas capitais não produzem tipos parecidos com Kirkman.

Michel Temer gostou da série “House of Cards”, mas nunca se proclamou um admirador de Underwood. No caso de “Designated survivor”, é impossível alguém gostar da série sem gostar de Kirkman.

Só o proverbial sangue-frio de Temer pode ter permitido que apreciasse um personagem cuja história é diametralmente oposta à sua. Kirkman nada teve a ver com o atentado que decapitou o governo americano. Quando o mundo acabou, ele estava tomando uma cerveja e comendo pipocas. Temer foi instrumento essencial e ostensivo do processo que depôs Dilma Rousseff. Nesse sentido, Temer carrega a eterna maldição dos vices. A comparação entre a conduta de Kirkman na Casa Branca e a de Temer no Planalto não pode ir longe porque não se pode saber como seria o governo do vice de Dilma sem a colaboração dos ministros da doutora e de tantos notáveis que a apoiavam. Pela narrativa da série, eles teriam morrido no atentado.

O atual presidente do Brasil pode ser visto como sobrevivente de uma chapa cuja titular foi detonada, mas ele não chegou ao Planalto por acaso. Temer é um experimentado operador das manhas políticas de Brasília. Kirkman é o oposto.

Sem o risco de estragar o prazer alheio, pode-se revelar que há uma conspiração por trás do atentado que explodiu o Capitólio. Como Kirkman não é parte dela, a trama gira em torno da fritura do presidente.

É provável que exista uma (e só uma) personagem no Palácio do Planalto que possa ser comparada a alguém da série. É a chefe de gabinete de Temer, Nara de Deus Vieira. Ela desempenha um papel parecido com o da fiel assessora Emily Rhodes, que acompanhava Kirkman desde o tempo em que era um ninguém.

A segunda temporada da série está prevista para março, e é pedra cantada que o primeiro capítulo dará uma certa satisfação a Dilma Rousseff.

Numa trapaça do destino, a rede Netflix, que distribui a série “Sobrevivente designado”, está produzindo outra, sobre a Operação Lava-Jato. A série de Kirkman começa com a cena apocalíptica do Capitólio em ruínas depois do atentado. Às vésperas da divulgação dos depoimentos da Odebrecht, o andar de cima de Brasília teme que a Lava-Jato termine num apocalipse, como o “Sobrevivente designado” começou.

*Elio Gaspari é jornalista

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