sexta-feira, 31 de março de 2017

Acerto de contas com os tribunais | Cristian Klein

- Valor Econômico

23% dos integrantes de TCU, TCEs e TCMs são alvos de processo

No aniversário de Jorge Picciani em 2008, o presidente da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro encontrou-se com o então governador Sérgio Cabral, com quem travava uma disputa aberta, pela imprensa, a mais grave que tiveram e que durava oito meses, sobre os destinos do PMDB fluminense. Cabral convidara o então deputado federal Eduardo Paes para sair do PSDB, onde era secretário-geral nacional, para concorrer à prefeitura do Rio pelo PMDB. Cioso da preservação de seu espaço no partido, Picciani levantou-se contra a candidatura de Paes.

Para reforçar sua posição, fez uma aliança tática com o então deputado federal Eduardo Cunha para barrar as pretensões de Cabral. O duelo entre os pesos-pesados do PMDB do Rio só seria resolvido no almoço de 25 de março organizado na residência do atual presidente do Tribunal de Contas do Estado (TCE), Aloysio Neves, então chefe de gabinete que o aniversariante Picciani herdara ao suceder Cabral na presidência da Assembleia Legislativa.

Nove anos se passaram e todos estes personagens estão encalacrados com a Justiça, depois que a operação "O Quinto do Ouro" da Polícia Federal prendeu na quarta-feira cinco dos sete conselheiros do TCE fluminense, levou Picciani a depor coercitivamente e retomou o debate sobre a politização dos tribunais de controle externo no país.

Da casa de Neves, Picciani e Cabral só sairiam com as contas acertadas, por bem ou por mal. E assim se fez. O grande projeto de poder que os dois "capos" do PMDB do Rio haviam desenhado seria mantido. Anfitrião da reconciliação, o advogado e jornalista Aloysio Neves é oito anos mais velho que Picciani e 16 do que Cabral. Nunca exerceu um cargo eletivo, mas vem de uma tradicional família de funcionários públicos que lhe permitiu ser considerado alguém com "grande visão política". Ingressou no serviço público aos 19 anos e trabalhou nos gabinetes dos governadores Negrão de Lima, Chagas Freitas e Faria Lima.

Foi por suas mãos que o jovem Serginho Cabral se iniciou na administração pública, em 1987, na TurisRio, empresa pública voltada à promoção do turismo no Estado. Quatro anos antes, Neves havia sido preso quando a Polícia Civil encontrara 200 gramas de cocaína em seu apartamento em Ipanema. Nada que o impedisse de acompanhar a ascensão política do ex-subordinado. Em 1991, quando Cabral chegava à Assembleia, Neves foi rapidamente guindado para ser assessor técnico-legislativo do recém-eleito deputado. Quatro anos depois, subia mais um degrau, ao assumir como chefe de gabinete da presidência da Assembleia, posto que ocuparia por 16 anos consecutivos - oito com Cabral e oito com Picciani. Com tantos serviços prestados, a fidelidade foi recompensada com a indicação, em 2010, para o Tribunal de Contas do Estado.

Aloysio Neves era (ou é) presidente de um TCE que foi implodido pela operação da PF e que estendeu o caos fiscal e político do Rio ao campo institucional. Seus colegas de Corte que o acompanham na cadeia seguem a mesma lógica de recrutamento dos tribunais de contas Brasil afora: vêm do mundo político. Domingos Brazão foi vereador e deputado estadual; José Gomes Graciosa foi vereador e prefeito em Valença e deputado estadual; José Maurício de Lima Nolasco exerceu cargos de direção em órgãos nas três esferas de governo e ocupou a presidência da Cedae; Marco Antonio Alencar foi deputado estadual, chefe do Gabinete Civil e, mais importante, é filho do governador Marcello Alencar, morto em 2014.

É uma composição que espelha o perfil dos conselheiros das 34 cortes do país - do Tribunal de Contas da União (TCU), passando pelos 27 tribunais dos Estados (TCEs) e do Distrito Federal, os Tribunais de Contas dos Municípios dos Estados (Pará, Goiás, Ceará e Bahia) até os dois TCMs dos municípios de São Paulo e Rio de Janeiro. Autor de uma tese de doutorado sobre o assunto, o cientista político Marco Antonio Carvalho Teixeira, da FGV-SP, afirma que o caso do Rio surpreende apenas pelo tamanho. Não pela novidade, pela gravidade da influência política ou pelo envolvimento dos conselheiros em escândalos.

Mesmo em extensão, Teixeira lembra que, em 2014, o Superior Tribunal de Justiça afastou cinco dos sete conselheiros do TCE do Amapá. No mesmo ano, em São Paulo, Robson Marinho, chefe da Casa Civil na administração Mario Covas, foi afastado da Corte, suspeito de receber propina da Alstom. "Ele saiu da articulação do governo para a fiscalização desse mesmo governo. É preciso que o recrutamento para os tribunais de contas tenha mais distanciamento da política. Hoje, você pode dormir ministro e acordar fiscal do presidente", critica.

Foi o que aconteceu com José Múcio Monteiro, entre os dias 21 e 22 de setembro de 2009. Deixava de ser ministro das Relações Institucionais de Lula para entrar no TCU.

Teixeira cita o detalhado estudo apresentado, no ano passado, pela Transparência Brasil, que mostra o perfil dos 233 integrantes de tribunais de contas pelo país. Cerca de 80% ocuparam cargos eletivos ou de destaque na alta administração pública (como o de dirigente de autarquia ou secretário estadual), 23% são alvos de processos ou já receberam punição da Justiça e 31% são parentes de políticos. Nos TCEs de Alagoas e Rio Grande do Norte, 85% dos conselheiros tinham grau de parentesco com políticos no momento da pesquisa.

Para Marco Antonio Carvalho Teixeira, há duas grandes reformas necessárias: a criação do Conselho Nacional dos Tribunais de Contas, que exerça controle e padronização tal como faz o CNJ sobre o Judiciário (tema da PEC 28/2007); e a mudança do processo de recrutamento. A composição das cortes, propõe o pesquisador, deveria ter uma proporção maior de nomeações técnicas - são apenas duas entre os sete conselheiros de TCEs e entre os nove do TCU -, exigir uma quarentena dos indicados pelo Executivo e pelo Legislativo, e subir o nível de exigências para além da simples "reputação ilibada" e o "notório conhecimento". "Isso não quer dizer nada. Precisa fechar melhor o perfil: no primeiro caso, exigir ficha limpa, que não tenha sido condenado; e que a formação tenha conexão com áreas afins, como direito, economia, administração e contabilidade", defende.

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