segunda-feira, 27 de março de 2017

Trabalhadores do Brasil | César Felício

- Valor Econômico

Tiraram de vez o retrato de Getúlio da parede

A nova lei que permite a terceirização ampla, geral e irrestrita pode se tornar mais um marco do já quase total desaparecimento da herança de Getúlio Vargas no Brasil, mas não por significar a morte da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). Sobre esta morte, há controvérsias, uma vez que é um tanto esdrúxulo, para dizer o mínimo, mandar para a sanção presidencial um texto de 1998, com pouquíssima mão de tinta colocada nos últimos 19 anos, para reger as relações de trabalho daqui para frente. Embora a tramitação do projeto tenha se encerrado, há uma sensação difusa de que mais água irá mover este moinho.

O grande efeito político da nova lei pode ser a implosão da vida sindical, um esteio varguista. E este é um fator de resistência ao que a Câmara votou que pode crescer de importância nos próximos dias.


A impressão de que por aí está um aspecto crucial para estabelecer a regra de jogo parte de polos opostos, como o ex-ministro do Trabalho Paulo Paiva, hoje na Fundação Dom Cabral, em Belo Horizonte, e o consultor sindical João Guilherme Vargas Neto, ligado à Força Sindical.

"A contratação de terceirizados nas atividades fim pode levar trabalhadores representados por sindicatos diferentes conviverem na mesma categoria e na mesma empresa. É algo que pode provocar resistência", disse Paiva, que é nada menos que o autor original da proposta aprovada anteontem: assinar o projeto enviado pelo governo Fernando Henrique ao Congresso em 1998 foi um de seus últimos atos como ministro do Trabalho.

O ex-ministro pediu cautela na interpretação de suas palavras, já que fez uma incursão em uma seara da qual não é especialista, que é a do Direito do Trabalho.

Paiva afirmou que a intenção do governo FHC em 1998 era bem mais modesta do que a refundação que se pretende fazer agora: o objetivo fundamental da proposta, que estava dentro de um conjunto de medidas apresentadas pelo governo de então, era resolver problemas para a contratação de mão de obra no campo.

A ênfase das mudanças pretendidas por Fernando Henrique estava em diminuir o poder da Justiça do Trabalho e fortalecer a negociação direta entre o setor patronal e o do trabalho. Como FHC virou um gerente de crises em seu segundo mandato, perdeu as condições políticas de promover a mudança que queria para área.

Do jeito que ficou a lei, os sindicatos perdem a representatividade para negociar qualquer coisa que prevaleça sobre o legislado. "A relação sindical ficou ausente do que foi aprovado ontem. O poder de representação se dilacerou. É a instalação da anarquia", diz João Guilherme.

O outro ponto é o da questão da amplitude da nova regra em si. Paulo Paiva não aposta no extermínio da CLT. "A terceirização irá variar conforme o setor de economia. Ela tende a ser mais ampla no setor de serviços, e é praticamente impossível em segmentos do ramo industrial", disse. A verdadeira questão, segundo Paiva, é entender o que acontecerá com o mercado de trabalho e isto não se decide nos gabinetes do Congresso.

A legislação trabalhista é algo relativamente constante no Brasil desde 1943, ao passo que o nível de emprego e o grau de formalização no mercado de trabalho são variáveis com muita volatilidade. Já tivemos nos últimos 74 anos situações próximas ao pleno emprego, estamos agora com a que é considerada a maior taxa de desemprego da história.

A CLT, símbolo maior do varguismo na estruturação do Brasil moderno, nunca foi barreira grande o suficiente para impedir que as empresas contratassem quando acharam necessário. Também jamais foi obstáculo para demitirem quando lhes pareceu conveniente.

Em uma circunstância de expansão econômica, como foi o caso da década passada, o desemprego caiu, a formalização da mão de obra aumentou e o porcentual de salários com aumento real chegou a 95% do total em 2012, segundo um texto para discussão do economista Ricardo Summa publicado pelo Instituto de Economia da Uerj. Nos anos 80, o desemprego e a informalidade também caíram e o nível dos salários foi ajustado para baixo pela inflação.

Já os anos 90 foram marcados pela destruição de postos formais de trabalho, em uma fase em que o setor empresarial manobrou entre juros altos, por um lado, e perda de mercados protegidos pelo aumento da globalização, pelo outro. Paiva afirma que, ao propor mudanças na área trabalhista, o foco do governo era aumentar a eficiência das empresas, e não tentar intervir no nível de emprego.

A história sugere que o mercado de trabalho se rege pelos ciclos econômicos, e não pelo que diz a letra da lei. Não há instrumentos legais capazes de gerar emprego, o que existe são normas que mudam o paradigma varguista: o Estado se retira da mediação e o dono do capital se apropria de uma fatia maior da renda que suas empresas geram.

Quanto à vertente estritamente política do varguismo, o desaparecimento do antigo modelo parece inexorável. Vargas criou o modelo sindical que sustentou uma das pernas de seu sistema de poder no trabalhador urbano, sobretudo industrial, franca minoria no conjunto dos trabalhadores daquela época. A outra perna estava nas oligarquias rurais, esta era uma conciliação difícil e do ponto de vista social o getulismo foi mais tímido do que outros regimes populistas ou social democratas que existiram entre os anos 1930 e 1960 no mundo.

Nos fim dos anos 1970, fase em que por um breve momento o setor industrial foi o maior empregador da população economicamente ativa, a estrutura sindical tornou-se forte o suficiente para se tornar uma força política autônoma. Isso já era parte do passado quando FHC propôs sua reforma. O PT era a principal força oposicionista, mas os movimentos grevistas foram inexpressivos durante o governo tucano, como relembra o ex-presidente. O PT havia se tornado um partido como outro qualquer, de acordo com Fernando Henrique. Lula ganhou em 2002 pela capacidade de estabelecer alianças, não como o herói da classe operária.

Em toda a era lulista, o sindicalismo repousou em um plácido ecossistema de aparelhamento do Estado. Atônito, viu o poder desmonoronar em um ano e meio. A pífia atuação dos sindicatos na tramitação da lei da terceirização votada os desmoraliza e joga uma sombra sobre a capacidade de agitação para brecar a reforma da Previdência. É mais um sinal de uma página que se vira

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