segunda-feira, 24 de abril de 2017

O caixa comum | Fernando Limongi

- Valor Econômico

Não foi revelada toda a relação entre empresas e o Estado

As delações dos executivos da Odebrecht ditaram o noticiário da semana passada, que se fechou com expectativas de novas bombas. Léo Pinheiro, da OAS, iniciou seus depoimentos e Palocci mandou sinais de que estaria disposto a abrir o jogo. Por enquanto, a Lava-Jato tem girado em torno das relações entre políticos e empreiteiras, mas há razões para supor que as grandes empresas também compravam decisões e facilidades em outros endereços da Praça dos Três Poderes. O Tribunal de Contas da União (TCU) já entrou na dança e, como no mundo político, os enrolados estão no topo e não na base.

Quanto aos políticos, basta consultar as prestações de contas entregues ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para saber que suas fontes de recursos não se resumiam às empreiteiras. Há outros grandes doadores que, como a Odebrecht, seguiam uma estratégia pluripartidária, financiando a todos indiscriminadamente. Tomadas em conjunto, as campanhas de Dilma e Aécio declaram ter movimentado R$ 561 milhões. Deste total, nada mais nada menos que R$ 351 milhões vieram de doadores que apostaram em ambas as candidaturas. Dos R$ 350 milhões declarados por Dilma, R$ 210 milhões vieram de doadores que também regaram os cofres tucanos. Os números para Aécio são R$ 141 milhões provenientes de doadores comuns, mais da metade dos R$ 211 milhões reportados. Empreiteiras não são as únicas pessoas jurídicas a financiar o PT e o PSDB. A JBS, para citar o exemplo mais gritante, foi responsável por pouco menos de 20% do custo total das duas candidaturas.

A despeito da sua importância para a defesa jurídica dos envolvidos, do ponto de vista dos eleitores e de seu significado último, o número do caixa pelo qual doações polpudas nutriam as campanhas é irrelevante. Como explica Paulo Roberto Costa, cuja delação está disponível à consulta pública há mais de um ano, boa parte das doações contabilizadas oficialmente era gerada em concorrências superfaturadas. A empreiteira recebia dos cofres públicos mais do que a obra valia e retornava o dinheiro para o partido ou o candidato, na forma de contribuição oficial de campanha.

De acordo com a delação de Marcelo Odebrecht, as doações não contabilizadas serviam à estratégia da empresa que, abastecendo todos os lados, conseguia esconder dos partidos suas predileções políticas. As delações revelam também que, muitas vezes, os políticos preferiam o caixa dois ao um por razões similares, isto é, para obter maior controle sobre a distribuição dos recursos, repassando dinheiro à sua facção sem interferência do partido.

Ao que as delações indicam, a independência das facções era maior no PMDB, composto por pelo menos quatro tesourarias independentes. Duas facções tinham assento no Senado. A primeira, reunida em torno do ex-presidente Sarney, era alimentada pelo controle de ministérios chaves, como o de Minas e Energia. A segunda, comandada por Renan e Jucá, se especializara na aprovação de medidas provisórias urdidas pela presidência. Os dois outros grupos pemedebistas tinham assento e trânsito na Câmara. O mais antigo gravitava em torno da tríade Temer-Padilha-Moreira, enquanto Eduardo Cunha liderava um grupo insurgente, que se consolidara após a entrada do PMDB para o governo Lula, e que estendera seus tentáculos a Furnas, Petrobras e Caixa Econômica Federal. Cada um destes grupos tinha arrecadação centralizada e fazia repasses internamente a seus membros.

Tome-se o famigerado jantar no Palácio Jaburu em que Marcelo Odebrecht garantiu recursos a Paulo Skaf. Não que qualquer dos convivas duvidasse que se tratava de um típico candidato pato-manco - na tradução livre de lame-duck. A tríade Temer-Padilha-Moreira esperava reforçar a bancada paulista do partido via transferência de votos. Marcelo Odebrecht, pelo que se sabe, não pediu nada em troca, mas, com certeza, sabia que, adiante, sua generosidade seria recompensada. Paulo Skaf parece não ter incluído a doação na sua prestação de contas. Faria alguma diferença se o tivesse feito?

As razões para a sobrevivência do caixa dois podem ser mais complexas do que as citadas acima. Inclusive, podem não ser essas. Não importa. O fato é que a origem de parte considerável das contribuições declaradas das campanhas não se distingue do caixa dois. As relações entre financiadores e financiados é a mesma, tenha ou não o dinheiro feito parte da prestação de contas entregue ao TSE.

A Odebrecht, sabemos, doava tanto via caixa um como via caixa dois. A empresa não contribuiu para as campanhas de Dilma e Aécio por acreditar nos projetos políticos do PT ou do PSDB. Não foram os programas ou as ideias dos candidatos que abriam seus cofres. As contribuições visavam garantir que as prioridades da empresa viessem a ser atendidas, independentemente das preferências dos eleitores.

Ao se defenderem, quando afirmam que receberam apenas doações legítimas, políticos querem nos fazer crer que acreditavam na imparcialidade de seus financiadores, que estes agiriam como verdadeiros filantropos ou beneméritos. Nem todas as ajudas a "título de contribuição para a campanha" envolviam trocas concretas. Mas, como as delações deixam claro, presentes alimentam amizades, geram reciprocidade, deixam dívidas e créditos a receber.

A Lava-Jato revelou apenas uma parte das relações entre empresas e o Estado. O espectro das primeiras não se limita às empreiteiras e, muito menos, o Estado se restringe aos líderes políticos. A lista dos grandes doadores oficiais onde, além das empreiteiras e da JBS, figuram pesos pesados do PIB nacional, traz indicações do que ainda pode vir. Da mesma forma, o envolvimento do TCU mostra que políticos não eram os únicos a tomar decisões que interessavam os doadores. Palocci se pôs a disposição para conversas mais livres com Moro a este respeito. Resta saber se o magistrado vai querer ouvi-lo.

*Fernando Limongi é professor do DCP/USP e pesquisador do Cebrap.

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