sábado, 13 de maio de 2017

Antonio Candido - Redescobridor do Brasil

- O Globo

Um dos principais intelectuais do país, crítico e sociólogo ajudou a decifrar a identidade nacional por meio do estudo da literatura

Aos 98 anos, Antonio Candido se mantinha lúcido e atento, dedicando-se até o fim a ler e a interpretar o Brasil — duas atividades que o consagraram como o mais influente crítico literário de seu tempo e um de seus maiores pensadores. Amigos e familiares que conviveram com o escritor e sociólogo, autor de obras seminais como “Formação da literatura brasileira”, contam que, apesar de quase não sair de casa nos últimos anos por causa da idade avançada, Candido continuava informado sobre a produção atual e a realidade do país.

— Ele se dizia desinteressado das coisas, o que era da boca pra fora, porque estava sempre comentando uma notícia ou outra — diz a historiadora Marina de Mello e Souza, filha do escritor. — Em um momento como este, a morte de uma pessoa como Candido representa um mundo que acabou, do sonho de criar uma igualdade que não aconteceu. Ele via no noticiário a ascensão da direita, a guerra na Síria, a intolerância... Tudo isso o espantava muito.

Para diferentes gerações, Candido foi um divisor de águas. “Sem dúvida o estudo da literatura brasileira é AC e DC”, publicou em seu perfil no Twitter o cronista Antonio Prata. Era uma “figura que jamais saiu do seu tempo”, acredita o filósofo Adauto Novaes, seu amigo.

Nascido no Rio em 1918, o tempo de Candido foi o século XX, mas com o olho no XIX. Descendente de barões do Império, morou dos 3 aos 10 anos de idade na mineira Santa Rita de Cássia, onde presenciou costumes e pensamentos do século anterior. Nos últimos anos, porém, se sentia excluído do mundo contemporâneo, revela Marina.

— O meu pai nasceu em 1918, mas no interior de Minas Gerais ele viveu uma experiência de século XIX. Então, ele viveu experiências do século XIX e viveu quase todo o século XX. O século XXI não lhe agradou.

“IMORTALIDADE” RECUSADA
Candido chegou a prestar exame para a faculdade de Medicina antes de ingressar, em 1939, nos cursos de Direito e Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP). Nessa época, em 1940, estreou na imprensa no exercício da crítica literária, na revista “Clima”.

A linguagem fluente e a visão aguda fizeram com que fosse contratado para assinar críticas “de rodapé” na “Folha da Manhã” (atual “Folha de S. Paulo”) e, em seguida, no “Diário de S. Paulo”. Desde o início, seus textos se caracterizaram pela clareza. Pertencente às primeiras gerações de formação universitária na área de ciências humanas no Brasil, Candido era identificado com um estilo de raciocínio estético então novo no país. Foi um pensador que transitou entre dois universos — o da clareza exigida no cotidiano jornalístico e o da profundidade acadêmica.

— A gente descobria as dificuldades do pensamento através da extrema simplicidade com que ele escrevia — lembra Adauto Novaes. — Ele transformava literatura numa grande análise filosófica.

Com o clássico “Formação da literatura brasileira”, de 1959, Candido consolidou conceitos fundamentais não apenas para se entender a literatura brasileira como para aprofundar as interpretações sobre a cultura nacional. O livro, que busca reconstituir a história dos brasileiros no seu desejo de ter uma literatura, venceu o Jabuti em 1960 (ele receberia o maior prêmio do país outras três vezes).

— Candido mostrou o lugar central da literatura de ficção e da poesia nas nossas tradições intelectuais e artísticas mais amplas, dado o interesse constante da literatura pela “realidade social” — diz André Botelho, professor da UFRJ.

Em 1998, Candido ganhou o Prêmio Camões. Foi professor emérito da USP e da Unesp e doutor honoris causa da Unicamp, de Campinas (SP). Nunca se candidatou a vaga na Academia Brasileira de Letras, apesar dos numerosos convites.

— Se ele se candidatasse à vaga na Academia certamente seria ungido, mas nunca quis. Não por alguma discordância, era uma questão da personalidade dele mesmo — comenta o presidente da ABL, Domício Proença Filho.

Sempre teve militância política de esquerda. Foi presidente da União Brasileira de Escritores (UBE) e um dos idealizadores do Partido dos Trabalhadores, em 1980. Em 2009, quando a Tropa de Choque da Polícia Militar de São Paulo foi chamada pela USP, na época em greve, Antonio Candido fez rara manifestação pública para defender os estudantes e funcionários.

— Ele foi um extraordinário professor, que formou gerações de pessoas — diz o ex-ministro da Educação Renato Janine Ribeiro. — E também tinha uma dignidade enorme. Mesmo quem discordava de suas posições tinha um profundo respeito por ele, isso é algo muito raro.

OPÇÃO PELOS OPRIMIDOS
Para um de seus principais discípulos, o crítico literário Roberto Schwarz, Candido era uma figura singular, cuja “ausência de vulgaridade ligava-se à antipatia pela opressão”.

— Ele viveu muito tempo e tinha uma memória extraordinariamente exata e viva das muitas coisas lidas, presenciadas e ouvidas — diz Schwarz. — O conjunto era bem repertoriado, como um fichário de pesquisador. Como ele conservou até o fim a agilidade mental, estava sempre reprocessando o que sabia, examinando velhas anedotas, comparando os tempos, os lugares e as leituras, chegando a novas conclusões. Essas recapitulações tinham viés moderno e crítico, pois eram atravessadas pelo partido sistemático que ele havia tomado pelos oprimidos, fossem eles os pobres, as mulheres, os negros, os subdesenvolvidos.

Antonio Candido de Mello e Souza morreu na madrugada desta sexta-feira. Estava internado no hospital Albert Einstein, em São Paulo. Foi casado com Gilda de Mello e Souza, morta em 2005, com quem teve três filhas, Ana Luísa, Laura e Marina.

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