quarta-feira, 31 de maio de 2017

Arquiteto de ruínas | Marina Silva

- Valor Econômico

Parece termos chegado ao momento do salve-se quem puder, no qual não há mais cuidados para manter as aparências

Vitória de segundo turno, eleições de 2014. Palanque repleto de figuras de muito peso político. Tão pesado que dava a estranha sensação de que a qualquer momento poderia desabar. Estavam postados a presidente reeleita Dilma Rousseff, seu vice Michel Temer, a quem se dirigiu em agradecimento como "meu companheiro de chapa"; o ex-presidente Lula, um dos principais assinantes da sua vitória e a quem também se dirigiu agradecida; além dos principais representantes dos partidos políticos que deram suporte à chapa Dilma-Temer: PT, PDT, PCdoB, PP, PRB, PR, PSD, Pros.

Para completar, o grupo de militantes que lotava o auditório de um hotel de Brasília se esforçava para passar entusiasmo com a vitória daqueles que haviam conquistado o direito de ficar com as batatas machadianas de Quincas Borba.

Hoje, olhando retrospectivamente, avaliando o que estava subjacente àquele sorumbático palanque - que só ainda não caiu de vez graças à grande capacidade de seus ocupantes no domínio dos "mecanismos" (vigentes há 500 anos, como diz José Padilha) para fabricar próteses e muletas para se sustentar no poder - fica mais que evidente o porquê daquele momento da aparente vitória denunciar acústica, pictórica e imageticamente o pódio da derrota.

Derrota da democracia fraudada pelo dinheiro da corrupção endêmica e sistêmica que tomou conta de uma parte das maiores empresas nacionais e das instituições públicas. Derrota da política, reduzida ao cinismo da isenção sem culpa de que os fins justificam os meios, mesmo que isso signifique tirar de mais de 14 milhões de pessoas o trabalho que lhes assegurava o pão. Derrota do discurso da equidade social, que graças aos bilhões em empréstimos a juros subsidiados do BNDES possibilitou que empresas "amigas" se tornassem "campeãs nacionais", inclusive com a compra de medidas provisórias e leis no Congresso, como contrapartidas de um jogo de cartas marcadas.

Se o olhar retrospectivo revela hoje o que aquele palanque já denunciava, o olhar prospectivo mostra um cenário cinza sobre a cabeça dos que desejam ver o país construir algum trilho fora do famigerado mecanismo de chegada ao poder via corrupção. Remanescente daquele palanque, o presidente Michel Temer e seus operadores dão continuidade ao mesmo esquema com o apoio do partido que ele mesmo havia ajudado a derrotar no segundo turno, o PSDB. Se hoje já se tornou parte do vocabulário político o termo corrupção institucionalizada, criada pelo delegado aposentado Jorge Pontes, será que em breve teremos de introduzir o igualmente incômodo termo "Justiça institucionalmente bloqueada"?

Nesta semana, o presidente Michel Temer tentou manter seu ex-ministro da Justiça Osmar Serraglio como ministro da Transparência, Fiscalização e Controladoria Geral da União para manter foro privilegiado a seu ex-assessor, o suplente de deputado Rodrigo Rocha Loures, flagrado em vídeo com a mala de dinheiro de propina. Temer agiu de forma semelhante para blindar seu braço direito no governo, Wellington Moreira Franco. Citado na Lava-Jato, foi nomeado ministro da Secretaria Geral da Presidência da República. Na época, Temer alardeou com pompa e circunstância seus critérios para tratar os casos de ministros de seu governo envolvidos na Lava-Jato. O que fez na prática foi abrir mão da sua responsabilidade de qualquer medida moralizadora.

O presidente, de certo modo, isentou todos os ministros ao dizer que apenas aqueles que virarem réus serão afastados definitivamente. Considerando o tempo de uma denúncia ser aceita e o ministro virar réu, o mandato do ministro implicado já terá terminado. Na prática, nenhum ministro denunciado ou citado na Lava-Jato será afastado. E ao que tudo indica, essa postura de "proteção" também será válida para seus assessores.

A propósito, Temer foi citado na Lava-Jato na condição de presidente do PMDB, mas como se tornou presidente da República não pôde ser afastado por descalabros praticados no período anterior ao cargo que ocupa. No entanto, com a delação recente da JBS que implica Temer no exercício de seu mandato, o ministro do STF Edson Fachin autorizou a abertura de inquérito contra o presidente para apurar se houve crime de corrupção passiva, organização criminosa e obstrução à Justiça.

Em entrevista, o recém-empossado ministro da Justiça deu pistas do que motivou a sua nomeação ao questionar a abertura do inquérito e sugerir que possa ter havido "abuso de autoridade" e "crime funcional de quem autorizou a gravação". Acrescentou ainda ser "recomendável" que haja um pedido de vista na retomada do julgamento da cassação da chapa Dilma-Temer no TSE, além de confirmar que vai "avaliar" e "ouvir a recomendação do presidente" sobre mudanças na direção da Polícia Federal, o que poderá influenciar nas investigações da Operação Lava-Jato.

E isso ocorre concomitantemente à perícia do áudio gravado do encontro entre o presidente e o empresário Joesley Batista da JBS pela Polícia Federal. Outro indício é que sob o governo de Michel Temer houve o contingenciamento de 44% do orçamento de custeio da PF previsto para 2017, além da redução da equipe destacada para a força-tarefa da Operação Lava-Jato.

Estaria o presidente Michel Temer, tão apegado ao mecanismo que o colocou no poder, deflagrando abertamente uma ofensiva de "obstrução institucional da Justiça" e desmonte da operação Lava-Jato? Há fundadas razões para acreditar que sim. E não só ele. Parece termos chegado ao momento do salve-se quem puder, no qual não há mais constrangimentos nem cuidados para manter as aparências. Como diria Quincas Borba, "engana-se, senhor, trago essa máscara risonha, mas sou triste. Sou um arquiteto de ruínas".
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Marina Silva, ex-senadora e fundadora da Rede Sustentabilidade, foi ministra do Meio Ambiente e candidata à Presidência da República em 2010 e em 2014.

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