segunda-feira, 8 de maio de 2017

Encontro marcado | Fernando Limongi

- Valor Econômico

O inimigo comum foi batido, a paz chegou ao fim

Gilmar Mendes e Deltan Dallagnol trocaram farpas. Após retornar de seu périplo acadêmico pela Europa, Gilmar pôs-se a campo e passou a tratar das "alongadas prisões que se determinam em Curitiba", com quem marcara encontro em fevereiro. José Carlos Bumlai e João Claudio Genu deixaram a prisão sem reações, mas a extensão da liberalidade a José Dirceu teve troco. A Segunda Turma prevaleceu. Edson Fachin anotou o recado e procurou evitar que o mesmo ocorresse com Antonio Palocci.

Não é de hoje que os advogados denunciam as "arbitrariedades" das prisões decretadas por Sergio Moro. As decisões da Segunda Turma lhes trouxeram alento. Pierpaolo Cruz Bottini, representante da senhora Cruz Cunha, comemorou: "A corte cumpriu com seu papel, apontando que a restrição à liberdade é excepcional e exige motivação mais densa do que apenas alusões genéricas a gravidade do crime e a uma suposta periculosidade do réu." Finalmente, o STF teria lhes dado ouvidos. A farra das preventivas teria chegado ao fim.

A força-tarefa nunca escondeu que trabalha no limite do que a lei lhe faculta e que as prisões cautelares fazem parte de uma estratégia para obter provas, confissões e apoio popular. Sergio Moro, na introdução que escreveu ao livro que historia a Operação Mãos Limpas, afirma: "Em um contexto de corrupção sistêmica, penetrante, profunda e disseminada nas instituições e na sociedade civil, a adoção de remédios excepcionais não pode ser considerada uma escolha arbitrária, mas medidas necessárias, na forma da lei, para romper o círculo vicioso."

Advogados frisam os "remédios excepcionais" e notam que o "na forma da lei" é um mero aposto adversativo, ali só para inglês ver e ser desconsiderado na prática.

Em artigo anterior que circula na rede, escrito antes da deflagração da Lava-Jato, Moro já havia notado que, no Brasil, "a prisão pós-julgamento foi também tornada exceção. (...) Com efeito, a regra tornou-se apelo em liberdade. Tal construção representa um excesso liberal com uma pitada de ingenuidade."

Neste mesmo artigo, um verdadeiro manifesto-programa, Moro aponta para a relação entre as prisões cautelares e o apoio da opinião pública: "A prisão pré-julgamento é uma forma de se destacar a seriedade do crime e evidenciar a eficácia da ação judicial, em sistemas judiciais morosos. Desde que presentes seus pressupostos, não há óbice moral em submeter o investigado a ela."

Moro, em seus escritos, repetidamente, insiste que na luta contra a corrupção, o magistrado não deve ser detido por óbices morais. Deve ouvir apenas sua convicção e o fim maior que persegue. Referindo-se à Mãos Limpas, afirma que a "publicidade conferida às investigações (...) garantiu o apoio da opinião pública às ações judiciais, impedindo que as figuras públicas investigadas obstruíssem os trabalhos dos magistrados, o que, como vimos, foi de fato tentado."

A estratégia de Moro e de sua força-tarefa é conhecida e vem sendo aplicada à risca, sem surpresas, desde o início da operação em 2014. A cada nova etapa, novas prisões seguidas dos alertas dos advogados. Gilmar Mendes só marcou seu confronto com elas em fevereiro de 2017. Fica a pergunta: por quê demorou tanto?

O fato é que em março de 2016, pouco mais de um ano atrás, o ministro tinha entendimento diverso. Na ocasião, Moro jogou sua carta decisiva, tornando público diálogo entre Dilma e Lula, cuja gravação havia mandado suspender horas antes. Apelou para o apoio da opinião pública para defender as ameaças a sua operação.

Gilmar ratificou a estratégia. Ao apreciar a medida cautelar visando impedir a posse do ex-presidente, o ministro reconheceu que havia lugar para o questionamento da "validade da interceptação", notando que o diálogo ocorrera às 13h32, após a "decisão determinando a interrupção das interceptações em 16/3/2016, às 11h13. A ordem não foi imediatamente cumprida, o que levou ao desvio e gravação do áudio mencionado."

Gilmar Mendes, entretanto, confrontado com o "desvio", contornou o problema, afirmando que "no momento, não é necessário emitir juízo sobre a licitude da gravação em tela. Há confissão sobre a existência e conteúdo da conversa, suficiente para comprovar o fato."

Isto mesmo: importa a confissão. Difícil saber qual seria o momento adequado para se pronunciar sobre a licitude da gravação. Gilmar reconhece, portanto, que a gravação foi ilegal, mas desconsidera o ato. Faz mais, ignora solenemente a pergunta subsequente: tinha Moro o direito de tornar pública a gravação? Este pormenor, sequer é mencionado pelo ministro em seu voto.

Será exagero concluir que, naquele momento, os dois magistrados entendiam que a veiculação das gravações se inscrevia no rol das medidas excepcionais, necessárias ao combate ao mal maior que enfrentavam?

Passou-se um ano e muita água debaixo da ponte. Sergio Moro e a força-tarefa perderam o amparo e a proteção que emanava da mais alta corte do país. Por quê? O que mudou? Não faltam respostas.

Uma coisa é certa, a resposta não deve ser procurada na doutrina jurídica. Para ambos, para usar a expressão empregada por Sergio Moro em outro contexto, tais questões não passam de "jogos semânticos". O confronto está em outro plano, no juízo prévio sobre o objeto das cruzadas em que cada um deles está engajado. O inimigo comum foi batido. A paz chegou ao fim.

Sergio Moro, em seu artigo-programa, nota que no Brasil a magistratura e o Ministério Público "gozam de significativa independência formal frente ao poder político", mas que o mesmo não se dá com os "órgãos superiores, mais dependentes de fatores políticos", um "destaque negativo" à sua cruzada.

A Segunda Turma e a força-tarefa marcaram encontro ao pôr do sol. O duelo promete ser dos bons.
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Fernando Limongi é professor do DCP/USP e pesquisador do Cebrap.

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