quinta-feira, 25 de maio de 2017

'parlamentarismo' reformista pode se consolidar

Vinicius Mota | Folha de S. Paulo

O choque produzido no governo Michel Temer pela delação dos irmãos Batista pode, em tese, relançar o Brasil numa longa fase de profundas incertezas políticas, administrativas e econômicas.

Essa hipótese, a julgar por desdobramentos iniciais da crise, parece contudo menos provável.

Setores do PT já refazem os cálculos e agora tendem a preferir, embora silenciosamente, a manutenção de um Temer fragilizado à queda do mandatário. Faz sentido.

Fecham-se depressa as portas para heterodoxias constitucionais que poderiam dar ao ex-presidente Lula a oportunidade preciosa de eleger-se pela via direta nos próximos meses e, na mesma tacada, livrar-se da Lava Jato.

A melhor opção para o chefe petista, nesse quadro, passa a ser a aposta num governo debilitado o qual possa derrotar em outubro de 2018.

O QUE DIZEM AS LEIS
O artigo 81 da Constituição é explícito. A queda de Temer a esta altura do campeonato deflagraria, em 30 dias, eleições indiretas para os cargos de presidente e de vice.

Uma modificação do Código Eleitoral sancionada em 2015 dispõe diversamente. Prevê eleições diretas para cassações eleitorais sacramentadas até seis meses antes do fim do mandato, o que pode ocorrer no julgamento marcado para 6 de junho da chapa Dilma/Temer.

A Constituição, lei mais elevada do país, sobrepõe-se ao Código. Nem com muita ginástica interpretativa o Supremo –apto a julgar uma ação a esse respeito– poderá desconsiderar o que determina a Carta sem sequelas graves para a estabilidade das normas.

A intervenção minimalista do movimento Diretas-Já, na emenda do deputado fluminense Miro Teixeira (Rede), pretende alterar o próprio mecanismo constitucional. Propõe que a vacância de presidente e vice a mais de seis meses do final do mandato seja preenchida pelo voto direto.

Nesse caso há mais debate sobre a aplicabilidade da nova regra após uma eventual saída de Temer. Não há dúvida, entretanto, sobre qual é a via ortodoxa da interpretação jurídica: não se pode mudar a regra com o jogo em andamento. Uma vez alterado o rito de sucessão nos termos da emenda, ele valeria apenas para os presidentes e vices eleitos a partir de 2018. Não se aplicaria para substituir a ausência de Michel Temer.

Não será preciso, portanto, fazer força para que a queda do presidente, caso ocorra, deflagre uma eleição no Congresso para sucedê-lo. Aqui entram a política e o chamado "espírito do tempo".

O QUE QUEREM OS PODEROSOS
A maioria parlamentar de centro-direita, os donos do dinheiro e boa parte da elite do próprio Judiciário não se mostram interessados na alteração do roteiro previsto na Carta.

A minoria em torno do petismo tem óbvio interesse nas diretas, mas para mudar o curso do jogo não tem demonstrado força nem no Congresso nem na sociedade. O tom sobretudo vermelho e a baixa adesão dos últimos protestos são indicativos de seu relativo isolamento.

O movimento inercial que desde 2013 empurra o Brasil, muito em razão da necessidade, para mais um ciclo de abertura aos negócios e à livre-iniciativa não parece ter sido afetado pelos últimos acontecimentos em torno de Temer.

Os nomes ventilados para a eventual sucessão indireta estão todos comprometidos com a manutenção da equipe econômica e das reformas. A ponta de dúvida fica com a ministra Cármen Lúcia, a mais enigmática das "candidaturas".

QUEM RESISTE ÀS REFORMAS
O notório açodamento do procurador Rodrigo Janot na ação contra Temer deu margem à especulação de que haveria ali também uma tentativa de frustrar a reforma da Previdência, cuja votação na Câmara se aproximava.

A República Corporativista do Brasil, de cuja vanguarda o Ministério Público e o próprio Judiciário são integrantes, tem sido e continuará a ser o maior adversário do programa liberalizante.

É, aliás, curioso e pouco explorado o paradoxo entre, de um lado, a atuação modernizante de procuradores e juízes no controle do abuso de poder político e econômico, como na Lava Jato, e, do outro, sua visão de mundo arcaica e estatista quando combatem o programa de reformas.

As forças da República Corporativista estufaram a tal ponto as finanças estatais na última década que ensejaram contra si uma forte reação e estão sendo obrigadas a ceder algum terreno.

A emergência orçamentária e o garrote recessivo concentram a mente da elite política e empresarial. A ojeriza dos eleitores à inflação, resultante sensível da festança corporativista, seleciona negativamente os políticos e as políticas identificados com o passado recente.

Tudo isso tem feito o movimento reformista avançar em ritmo acelerado, ao menos para os padrões brasileiros.

PARTIDO DA CONSTITUIÇÃO
Emerge nesse contexto uma espécie de Partido da Ordem Constitucional, com perdão do oximoro, para gerir a massa falida brasileira na agonia de Michel Temer. Os interesses políticos majoritários e as necessidades econômicas prementes alinham-se perfeitamente ao ordenamento jurídico.

Não será preciso malabarismo casuístico nem muito menos intervenção militar para que a agenda reclamada pelos setores circunstancialmente dominantes seja preservada. A opção pela legalidade em momentos de estresse, vale frisar, tem sido um diferencial da Nova República em comparação aos regimes que a antecederam.

Os discretos e eficientes militantes do Partido da Constituição discutem agora a hipótese de enterrar o presidente combalido, em harmonia com o devido processo legal, no julgamento do Tribunal Superior Eleitoral.

Trabalham, os partidários da Ordem Constitucional, por uma sucessão indireta, plenamente legal, que produza menos descontinuidade possível nas marchas do processo legislativo e da administração federal.

De 1848 a 1851, a França transitou de república parlamentar para o despotismo de Luís Bonaparte. Desde 2013, o Brasil caminha num sentido diferente: do hiperpresidencialismo concentrador de poder para um semiparlamentarismo de compartilhamento de forças.

Cortar a cabeça de Michel Temer poderá, ironicamente, fortalecer e até consolidar o formato resultante dessa transição, compatível com um certo antibonapartismo conservador. Poderá torná-lo, como a Hidra de Lerna, difícil de destruir.

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