quarta-feira, 31 de maio de 2017

Pátria-mãe tão distraída | Monica De Bolle*

- O Estado de S. Paulo

Com apoio e reputação corroídos, o governo Temer é agora refém do Congresso Nacional

O momento pede calma, mas calma não há. O momento pede reflexão, mas reflexão não há. O momento pede lucidez, mas lucidez não há. O momento não pede distração, mas distração é o que há de sobra. Distrai-se a pátria com as minúcias do grampo de Joesley Batista, com as declarações de membros do TSE que, nesse momento, deveriam manter o silêncio e a discrição. Distrai-se a pátria com a suposta urgência das reformas enquanto o resto desmorona, com a ponte para o futuro que nem pinguela é, com a falsa premissa de que são as reformas que importam, o resto é o resto. E assim segue pela avenida a nossa pátria-mãe tão distraída, sem perceber que continua a ser subtraída em tenebrosas transações. Em 1986, disse Chico Buarque que “Vai Passar”. Ainda não passou.

A economia já sente as consequências das novas revelações, do agravamento da crise política, da resistência de Temer e de seu toma-lá dá-cá, tal qual a antecessora, tal qual todos os políticos dessa República de pigmeus. O PIB do primeiro trimestre, quando anunciado for, já será passado – o governo Temer dividiu-se em pré-Joesley e pós-Joesley. O IBGE revelará como andava o período pré-Joesley. O pós-Joesley já está sendo redefinido por revisões para baixo do crescimento nos próximos dois anos, pela continuação da deterioração do mercado de trabalho, por incertezas que levaram as agências de risco a mais uma vez colocar o Brasil em revisão para possíveis rebaixamentos da nota de risco. O que estava dando certo pouco tempo durou. O saneamento do BNDES e a redefinição de seu papel foram-se com a demissão da presidente da instituição na última semana. Parece que o balcão de negócios será retomado para atender às demandas do empresariado dependente, em insuportável crise de abstinência. Diz o novo dirigente que não. Mas, o empresariado suplica por doses de crédito subsidiado para não abandonar – não hoje – o moribundo governo de Michel Temer.

As reformas. As reformas não são bloco de baianas reluzentes a rodopiar com suas saias rendadas. Não é o efeito visual das reformas que interessa, mas seu conteúdo. A reforma da Previdência é baluarte imprescindível para o teto dos gastos públicos aprovado no ano passado. Concebida como fundação de concreto, não pode a reforma da Previdência ser transformada em espeto de pau. Contudo, espicaçada já fora na tentativa do governo pré-Joesley de arregimentar apoio à reforma urgente, porém impopular, reforma que teria de enfrentar imensos obstáculos ainda que tivesse sido proposta por um governo legítimo. O governo Temer jamais foi legítimo, pois parido foi das entranhas do PT, envolvido está em alegações de corrupção, cercado está de gente que transaciona medidas provisórias em benefício próprio à revelia da população. População que erra cega pelo continente, leva pedras como penitente e ainda ergue estranhas catedrais a políticos desmascarados e defenestrados.

Com apoio e reputação corroídos, o governo Temer é agora refém do Congresso Nacional, parte do qual compactuou durante anos com a podridão mais podre. É esse Congresso que prenuncia o destino das reformas: uma reforma da Previdência mais “enxuta”, dizem. Talvez apenas a aprovação da idade mínima para a aposentadoria, ensaiam. Reforma da Previdência, espeto de pau. Espeto de pau, insustentabilidade fiscal. Sem sustentabilidade das contas públicas, como haverá de se financiar o governo? Como reagirá o mercado com seus prêmios de risco para a dívida pública brasileira? O que haverá de ocorrer com a trajetória dos juros, do câmbio? E a inflação? Não tardará para que se volte a falar em “antessala da dominância fiscal”, em ressurreição da “dominância política”, a outra face da dominância fiscal. Não tardará para que alguns economistas voltem a desqualificar o inevitável, interrompido por uma ponte que passou em suas imaginações, ponte de alegria fugaz, ofegante epidemia.

Palmas pra ala dos tubarões famintos, o bloco dos napoleões despidos, e os pigmeus do Jaburu. Enquanto o estandarte da desfaçatez geral se recusar a passar para a história, página mais infeliz da nossa história, desbotada ficará essa Pátria-mãe tão distraída. Subtraída a um impávido anão continental.
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*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University

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