terça-feira, 13 de junho de 2017

2017 e a paúra de 1968 | Gaudêncio Torquato

-Folha de S. Paulo

"1968, o Ano que Não Terminou." O livro de Zuenir Ventura, escritor que nos brinda com a leveza de sua pena nas crônicas do jornal "O Globo", é um panorama do terror daqueles fatídicos tempos. Em março daquele ano, iniciava, aos 22 anos, minha experiência no magistério na Cásper Líbero.

Respirava-se um clima pesado. O medo se incrustava em todos os espaços. Passei a exercitar o policiamento mental na escolha de termos proibidos pela repressão. Risquei do vocabulário, por exemplo, o substantivo "comunidade", por ter conotação comunista. Era o que dizia a cartilha que nos foi apresentada na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, onde também passei a lecionar.

Os tempos de chumbo pesavam. Em 28 de março de 1968, ao invadirem o restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro, policiais militares mataram o estudante Edson Luís. O assassinato gerou uma onda de indignação, acirrando ânimos.

Manifestações explodiam, até chegarem ao dia 3 de outubro, quando, na rua Maria Antônia (São Paulo), estudantes do Mackenzie entraram em luta corporal com os alunos da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP.

Encontrava-me no palco de guerra, até porque morava na esquina da Vila Nova com a Major Sertório, diante da praça Rotary e da biblioteca Monteiro Lobato.

No meio da confusão, não pude evitar as lágrimas provocadas por bombas de gás lacrimogêneo lançadas pela polícia. O medo nos seguia não apenas em salas de aula.

À noitinha, saíamos em grupo da Redação da Folha, na Barão de Limeira, onde trabalhávamos no departamento de Suplementos Especiais, para tomar um chopinho no Pingão, no largo do Arouche.

De repente, apareciam dois, às vezes três desconhecidos que, sem mais nem menos, começavam a puxar conversa. Eram dedos-duros a serviço do Dops (Departamento de Ordem Política e Social), com certeza. Esses estranhos se achavam no direito de invadir a privacidade das pessoas. Não os expulsávamos por receio de represálias.

O Estado policialesco inaugurado em 1964 era um pesadelo. De outra feita, como chefe de departamento de jornalismo da ECA-USP, acompanhei o professor José Coelho Sobrinho ao Dops com o intuito de esclarecer dúvidas a respeito do jornal laboratório feito pelos alunos para a "comunidade"(ops, não pode!) da favela San Remo, colada ao campus do Butantã. Quase fomos trancafiados.

Qual a finalidade deste relato? Puxar para a ordem do dia o fio do rolo compressor de 1968. O Brasil atravessa uma estrada cheia de curvas, algumas abertas por operadores do direito.

O STF invade a esfera parlamentar. Os ministros da corte substituem sua missão de intérpretes da letra constitucional para adentrarem no território da política. O Ministério Público Federal conta com o apoio da Polícia Federal para realizar ações espetaculosas. Os escritórios de advocacia entraram na mira.

O procurador-geral elegeu como alvo o presidente da República. Ministros do TSE mostram-se tocados por uma "sanha punitiva", termo usado pelo próprio presidente do tribunal, Gilmar Mendes.

O país se transforma em gigantesca delegacia de polícia com investigações, devassa, busca e apreensão, prisões e conduções coercitivas, termos do novo dicionário político.

Até profissionais da mídia assumem papel de julgadores. Redes de comunicação, concessões do Estado, vestem a toga de juízes, produzindo catilinárias contra governantes. Há sinais de "boi na linha", indicando que interlocutores estão sendo grampeados. O medo grassa.

Ou o serviço telefônico chegou ao fundo do poço em matéria de qualidade ou as redes de grampo nunca foram tão operadas quanto hoje. Junho de 2017 parece monitorado pelos olhos do Big Brother de 1968.
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Gaudêncio Torquato, jornalista, foi professor da Escola de Comunicações e Artes da USP. É consultor político

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