sexta-feira, 16 de junho de 2017

Janot, o tatuador da República | Reinaldo Azevedo

- Folha de S. Paulo

O garoto da testa tatuada é símbolo de um tempo em que primeiro se pune e depois se investiga

"Eu sou ladrão e vacilão".

O adolescente que teve a testa marcada por homens comuns, que se querem - e devem ser - honrados, traduz aquilo que, como sociedade, fizemos do que fizeram de nós.

Nem a vítima nem seus algozes sabiam que ali estava um emblema destes dias. Quando um historiador decidir esmiuçar o Zeitgeist, o espírito deste tempo, há de se debruçar sobre esse evento aparentemente irrelevante para concluir que ele revela uma mentalidade, plasmada, sim, pelas vicissitudes do cotidiano, pela vida e seu ofício, pelas dificuldades que todos experimentamos, afinal, na própria pele. Mas não só isso. Todos temos também um juízo de valor sobre o poder, seus agentes e o bem ou mal que nos fazem.

Aquele historiador há de proceder como o norte-americano Robert Darnton no excelente "O Grande Massacre de Gatos e Outros Episódios da História Cultural Francesa". Em seis capítulos, ele expõe o modo de pensar da França do Século 18, na passagem do Antigo para o Novo Regime, por intermédio da análise de narrativas populares. Uma delas trata de um episódio ocorrido ali por 1730. Operários de uma tipografia da rua Saint-Séverin, em Paris, resolvem matar todos os gatos da vizinhança. Na origem do massacre, a revolta contra o patrão e as aviltantes condições de trabalho. A matança começou por "La Grise", a gata predileta da mulher do seu algoz.

Seria então o massacre mera metáfora da revolta do trabalho contra o capital? Darnton vai além dessa facilidade. Os gatos já não gozavam de boa reputação - trariam algo de maligno. Havia a tradição de torturá-los no Carnaval e outras festividades. O ódio episódico desencadeou a matança, mas esta não teria acontecido sem um lastro cultural.

Aquele acusado de ser um "ladrão de bicicleta" teve, segundo rosnou a extrema-direita nas redes sociais, o merecido tratamento. A extrema-esquerda não chegou a transformá-lo num herói, mas ensaiou o discurso das iniquidades sociais, o que é factualmente falso.

Notem que o rapaz não foi espancado, linchado ou submetido a barbaridades típicas dessas situações. Ele foi "marcado". O que interessa é submetê-lo ao opróbrio. A questão concerne à política. Rodrigo Janot, procurador-geral da República, manipulava o instrumento que gravou a testa do garoto. Exagero retórico? Estamos no terreno de simbolismos reveladores.

Então não é isso o que vem fazendo dia após dia, com a nossa - da imprensa - diligente colaboração, o MPF? Todos os políticos, de todas as tendências e matizes, trazem na testa "Eu sou ladrão e vacilão". É um truísmo: as pessoas fazem justiça com as próprias mãos quando não confiam naquela que lhes oferece o Estado. Sentem que precisam se proteger e purgar os pecados do mundo. E então se têm os bodes expiatórios, os gatos expiatórios, os homens expiatórios. E serão brutais segundo suas tradições e superstições.

A miséria moral é ainda maior: juízes estão a fazer justiça com a própria toga. Procuradores estão a fazer justiça com a própria página no Facebook. Especuladores disfarçados de jornalistas estão a fazer justiça com suas próprias apostas na variação cambial.

Um amigo, de um tempo extinto, está lendo "Dos Delitos e das Penas", que Cesare Beccaria escreveu aos 26 anos. Deveria ser obrigatório a todos os jornalistas, mais aos investigativos. Destaca um trecho e me manda por WhatsApp: "O verdadeiro tirano começa sempre reinando sobre a opinião; quando é senhor dela, apressa-se a comprimir as almas corajosas, das quais tem tudo que temer porque só se apresentam com o archote da verdade, quer no fogo das paixões, quer na ignorância dos perigos."

Entendi. O "janotismo" tentou me marcar e busca gravar o seu emblema, como tatuagem, na testa de qualquer um que rejeite o fascismo de esquerda como consequência natural da caça aos ladrões.

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