domingo, 25 de junho de 2017

Política e regeneração nacional | Ricardo Vélez Rodríguez*

- O Estado de S.Paulo

É preciso restabelecer o jogo político, respeitar a tripartição de Poderes segundo a Constituição

O tema está na crista da onda. Mas não é novo. Já os positivistas, paladinos da moralidade pública, apregoavam a “regeneração da sociedade brasileira” e à luz dessa pregação foi dado o golpe de 15 de novembro de 1889, que derrubou a Monarquia. Qual seria o remédio para a desordem causada pela representação e o debate político da “metafísica liberal” no Parlamento? Resposta: a ditadura científica, apregoada em alto e bom som pelos paladinos do cientificismo, Miguel Lemos e Teixeira Mendes, dirigentes do Apostolado Positivista, que, antes do golpe de 15 de novembro, conclamavam dom Pedro II a que ousasse ser o grande herói nacional, fechando o Parlamento e se proclamando a si próprio ditador central e líder do processo regenerador, a fim de implantar o Reino da Virtude.

Quando emergiu esse modelo? O seu criador foi o general Napoleão Bonaparte, ao se coroar imperador dos franceses, em 1804, fechando a Assembleia Nacional, foco da barganha política, e transferindo para si a representação da nação, que delegou a seus representantes no Senado, a fim de moralizar o país de acordo com os ensinamentos de Rousseau. Napoleão I substituiu o Congresso pelo Conselho de Estado, integrado por sábios e homens de prol, escolhidos por ele mesmo, com a finalidade de buscar as saídas necessárias ao bem da nação, à luz da ciência. O imperador chamou a si a magna tarefa de reorganizar a sociedade, esgarçada pela Revolução e pelo Terror jacobino. Tudo seria recriado de cima para baixo, como outorga salvadora do imperador, a começar pelo Código Civil. Por intermédio dos seus intendentes, Napoleão I tornava-se presente em todos os cantos do vasto império, com o auxílio da Grande Armée.

A filosofia, que, como dizia Hegel, “levanta voo quando as sombras da noite se aproximam”, registrou essa conquista das luzes napoleônicas na obra de dois pensadores, Saint-Simon e Comte. O primeiro ficou literalmente extasiado diante das conquistas do general Bonaparte e passou a cultuar a instauração da Sociedade Racional, na trilha da obra civilizadora do autocrata dos franceses. O conde Saint-Simon percebeu a índole messiânica do bonapartismo, atribuindo-lhe caráter redentor.

Comte, secretário de Saint-Simon, partiu para idêntica louvação da obra do imperador francês, enaltecendo seu caráter regenerador, na medida em que punha pra escanteio o debate político e o substituía por indústrias e comércio, organizados conforme os ditames das luzes à luz do Código Napoleônico. Era a “ditadura científica” que se firmava.

As duas tradições cientificistas, a prevalecente na França pós-Revolução e a proveniente das reformas pombalinas em Portugal, se juntaram na revivescência da tendência cientificista com que se viu às voltas o Segundo Reinado. Os “clubes republicanos” pipocaram por todos os cantos do Brasil ao longo da segunda metade do século 19, pregando uma República ilustrada que substituísse a velha retórica da “metafísica liberal”. Foi assim que esse difuso cientificismo cobrou forma definida no projeto de República autocrática que foi pensada no Rio Grande do Sul por Júlio de Castilhos e posta em prática por ele no longo ciclo que, iniciado em 1891, se prolongou até 1930, tendo consolidado o modelo de “ditadura científica” que Getúlio tomou como roteiro de viagem para a sua tomada do poder na Revolução de 30.

O próprio Getúlio expressou o seu propósito cientificista em discurso pronunciado em 4 de maio de 1931: “A época é das assembleias especializadas, dos conselhos técnicos integrados à administração. O Estado puramente político, no sentido antigo do termo, podemos considerá-lo, atualmente, entidade amorfa que aos poucos vai perdendo o valor e a significação. Creio azado o ensejo para o cancelamento de antigos códigos e elaboração de novos. A velha fórmula política, patrocinadora dos direitos do homem, parece estar decadente. Em vez do individualismo, sinônimo de excesso de liberdade, e do comunismo, nova modalidade de escravidão, deve prevalecer a coordenação perfeita de todas as iniciativas, circunscritas à órbita do Estado, e o reconhecimento das organizações de classe, como colaboradores da administração pública”.

Firmou-se, assim, a versão contemporânea da “ditadura científica”. O debate político foi substituído pelos conselhos técnicos do Estado. Esse foi o modelo assumido pelos militares, sintetizado na expressão “engenharia política”, cunhada pelo general Golbery.

Ora, nas atuais ondas de choque da Operação Lava Jato, tal saída tecnocrática parece ter ficado em evidência quando os procuradores do Ministério Público, congregados na Procuradoria-Geral da República, exorcizam os males da política despolitizando o debate e tornando-o questão “técnica”, a fim de implantar o Reino da Virtude Republicana. É o processo purificador que o professor Werneck Vianna atribui à nova elite dos “tenentes de toga”.

A reação da sociedade brasileira contra os desmandos lulopetistas, potencializados pelo cientificismo marxista, não pode cair nesse beco sem saída que nos leva direto ao passado da ditadura positivista. É necessário restabelecer o jogo político, respeitando a tripartição de Poderes e o funcionamento deles dentro dos limites fixados pela Constituição. Que a Justiça exerça o seu papel, julgando os que agiram fora da lei. Mas sem artifícios estranhos à ordem constitucional, com suspeitas delações e afoitos indiciamentos que provocam instabilidade, com uma promessa vaporosa de “regeneração moral” que somente pode beneficiar os arquitetos do caos. A Procuradoria-Geral da República, o Ministério Público e a Polícia Federal são partes de uma engrenagem regida pela lei.

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* Ricardo Vélez Rodríguez é coordenador do centro de pesquisas estratégicas da UFJF, professor emérito da Eceme e docente da faculdade Arthur Thomas, Londrina

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