terça-feira, 20 de junho de 2017

Separar o joio do trigo | Merval Pereira

- O Globo

A Procuradoria-Geral da República está anunciando informalmente uma decisão que deveria ter sido tomada desde o início da Lava-Jato: a separação, para fins de punição, dos políticos que receberam dinheiro de caixa 2 para a campanha eleitoral e os demais, que receberam propina, muitos usando o caixa 1 como maneira de limpar a propina nas declarações do Tribunal Superior Eleitoral.

A chamada “Lista de Fachin” tinha, quando anunciada, 98 políticos com foro especial mencionados nas delações de Marcelo Odebrecht e de executivos da empreiteira. Cerca da metade poderia se enquadrar no exercício de caixa 2 puro e simples.

Ao misturar o joio com o trigo, como dito na época, a denúncia do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, ganhou impacto e aumentou o poder de fogo, mas colaborou decisivamente para a demonização da classe política, o que não ajuda a democracia.

Se fizesse uma triagem antes de anunciar a lista, poderia perder tempo, mas faria uma denúncia mais acurada, pois havia condições de definir através das delações quais políticos ofereceram contrapartidas em troca do financiamento ilegal: a aprovação de uma lei determinada, um penduricalho colocado em uma medida provisória, a atuação em órgãos governamentais.

Com relação ao caixa 2, aliás, já há posições definidas desde o julgamento do mensalão, já amplamente discutidas aqui na coluna. A presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, registrou sua indignação com a tentativa de banalizar a prática, a começar pelo ex-presidente Lula, que disse na ocasião que o PT havia feito o que todos os partidos brasileiros faziam.

O petrolão veio provar que o PT foi muito mais longe, mas Cármen Lúcia não tergiversou quando falou do caixa 2: “É crime”. Os ministros do STF Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso, cada qual a seu modo, também trataram do assunto. Mendes disse, com razão, que nem sempre a doação através de caixa 2 deve-se à corrupção. Ela pode ter razões políticas, como o empresário não querer que o governante da vez saiba que também está doando para seu adversário, e quanto.

Mas Barroso advertiu: “As razões podem ser diferentes, mas são crimes da mesma forma”. Também no mensalão o então presidente do Supremo, ministro Ayres Britto definiu a questão: “Não existe caixa 2 com dinheiro público. Nesse caso, é peculato”.

Já o Supremo terá que ratificar ou não a maioria da 2ª Turma, que, no caso do senador Valdir Raupp, decidiu que ele praticou corrupção passiva e lavagem de dinheiro ao aceitar que o dinheiro de propinas de obras públicas fosse doado através do caixa 1 e legalizado no TSE. A questão poderia ter sido decidida agora, no julgamento da chapa Dilma-Temer, mas como o TSE se recusou a usar as provas de financiamento ilegal, tudo ainda depende de uma definição judicial.

A tentativa de separar o joio do trigo, isto é, a diferenciação entre o uso de caixa 2 para fins puramente eleitorais e o beneficiamento pessoal do dinheiro ilegal, já fora proposta no início pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, mas é de difícil execução. Caberá, no final das contas, ao STF definir legalmente o divisor de águas entre todos os crimes cometidos por nossos políticos, e o de caixa 2 deve começar pela definição da contrapartida exigida do político pelo doador.

A tendência é propor a suspensão do processo, um acordo jurídico feito no momento da apresentação da denúncia, em troca de uma pena alternativa, seja multa ou serviços sociais. Para receber o benefício da suspensão do processo, o acusado não pode estar respondendo a outro processo ou ter uma condenação anterior. Essa definição de culpas vai clarear um pouco a situação política. Assim como não pode haver crime sem que esteja previamente previsto na legislação, todo crime deve ser punido de acordo com a sua gravidade.

Interpretação
O historiador José Murilo de Carvalho, meu colega na Academia Brasileira de Letras, citado pelo ministro Gilmar Mendes em seu voto no julgamento do TSE, me mandou o seguinte comentário: “Não assisti ao julgamento no TSE da eleição da chapa Dilma-Temer. Só mais tarde fui alertado de que fora citado em seu voto pelo ministro Gilmar Mendes. Ouvi a gravação e confirmei a referência a trabalho meu que diagnosticava a crônica instabilidade de nossas instituições. Mas não usei, nem nunca usaria, essa premissa, como fez o ministro, como argumento para justificar a absolvição de políticos praticantes de malfeitos, mesmo em se tratando da presidente e do vice-presidente da República”.

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