segunda-feira, 26 de junho de 2017

Tentações autoritárias

RESUMO Pesquisa Datafolha e Fórum Brasileiro de Segurança Pública indica que o país é terreno fértil para líderes autoritários. Diante do medo provocado pela violência urbana, maioria deixa de lado as leis e os planos políticos em busca de um salvador da pátria. Além de Bolsonaro, figuras como Lula e Doria se beneficiam desse cenário.

Medo da violência revigora tendências autoritárias e beneficia Bolsonaro

Renato Sérgio de Lima, Arthur Trindade Maranhão Costa, Folha de S. Paulo / Ilustríssima

O Brasil começa a flertar com o desmanche do Estado democrático de Direito inaugurado pela Constituição de 1988. A afirmação é forte, mas nem por isso menos verdadeira. Parcela significativa e crescente do eleitorado não vê nenhum problema nesse desmantelamento. Ao contrário, imagina que a adoção de uma linha dura deixaria o país perto do que há de mais moderno no brechó do mundo dos negócios e das economias desenvolvidas.

Entre indignados e perplexos, vamos nos dando conta dos riscos embutidos neste momento surreal vivido pelo Ocidente. Propostas salvacionistas dão o tom do tempo social: enquanto se valorizam líderes pretensamente capazes de restaurar a ordem e recolocar a sociedade nos trilhos, a democracia perde espaço e as tentações autoritárias se multiplicam.

A vitória de Donald Trump nos EUA e a votação expressiva da extrema direita em algumas partes da Europa atestam que o discurso do medo e da intolerância voltou a ser estratégia eleitoral bem-sucedida.

A retórica inflamada contra imigrantes, associados de forma genérica ao terrorismo, alimenta o temor cotidiano e pavimenta o caminho para arautos do ultranacionalismo e defensores de plataformas tipo "law and order" (lei e ordem).

No caso brasileiro, os estímulos são outros. Os elevados índices de criminalidade e as baixas taxas de solução dos delitos suscitam sensação de desalento em relação à segurança pública.

Têm cada vez menos apelo as propostas de construir uma sociedade mais segura e cidadã, suplantadas, em segmentos distintos da população, pelo arbitrário "pega, mata, esfola". Não há pudor em afirmar que "bandido bom é bandido morto" ou que "a população deve se armar para se proteger".

A deterioração da política e a petulância dos corruptos provocam merecidas ondas de indignação, mas é a violência urbana que de fato deixa os brasileiros sitiados.

Cometida por indivíduos criminosos, perpetrada pela própria sociedade ou levada a cabo pelo Estado, a violência é vista e aceita como parte constituinte de nossas relações sociais e, muitas vezes, termina legitimada como resposta às ameaças e incertezas.

DADOS FÚNEBRES
Não à toa, o Brasil responde por cerca de 10% dos homicídios registrados no mundo, embora possua menos de 3% da população global. Chegamos a quase 60 mil assassinatos por ano, mais do que se computa na guerra civil da Síria.

Pesquisa feita em abril de 2017 para a campanha "Instinto de Vida" descobriu que quase 50 milhões de pessoas com 16 anos ou mais tinham parentes ou conhecidos que foram assassinados. O levantamento também constatou que quase 5 milhões de brasileiros já foram feridos por armas de fogo e cerca de 15 milhões de adultos conheciam pessoas mortas pelas polícias e/ou guardas municipais.

O Atlas da Violência 2017, lançado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) no início de junho, mostrou que a violência não atinge todos de modo equânime. A maior parte dos homicídios se concentra no Nordeste e vitima jovens de 15 a 24 anos, negros e inseridos em contextos de vulnerabilidade social e urbana e de conflitos interpessoais.

Episódios recentes, como disputas entre facções criminosas, rebeliões em presídios e greves de polícias, explicitam a incapacidade dos poderes constituídos de lidar com o problema. Não surpreende que tantos cidadãos se revelem suscetíveis aos discursos radicais.

Pesquisa Datafolha publicada no começo deste mês mediu a adesão a ações que podem ser associadas à ideia de limpeza social e imposição da força: 55% dos paulistanos se declararam favoráveis à demolição de imóveis usados pelo tráfico na região da cracolândia e 80% defenderam a internação de dependentes de crack mesmo contra a vontade deles. A insegurança justificaria medidas excepcionais.

O medo sempre foi um dos fatores estruturantes das sociedades, como apontou Thomas Hobbes, mas se tornou um dos principais problemas dos novos tempos. Suas consequências podem ser percebidas em diferentes níveis.

Há efeitos psicológicos negativos, pois o medo causa descrença nos outros e insatisfações com a vida urbana. No plano social, restringe alguns comportamentos, fragiliza os laços vicinais e esvazia os espaços públicos. Na área econômica, ocasiona o aumento de gastos com segurança, produz processos de gentrificação e condiciona as formas de acesso das pessoas ao mercado.

EFEITOS POLÍTICOS
É no plano político, contudo, que o medo instila seu veneno mais nocivo, abrindo espaço para retóricas punitivistas, sexistas, racistas e xenófobas e constituindo-se no principal combustível dos discursos de ódio, que tomaram conta de grande parte da internet e das redes sociais.

Estudo recente veiculado na revista "PNAS" (publicação oficial da academia de ciências dos EUA), de autoria dos pesquisadores Hemant Kakkar e Niro Sivanathan, reitera que, em tempos de crise, quando as pessoas se sentem amedrontadas, há uma preferência por líderes dominantes e/ou assertivos, independentemente do comportamento agressivo por eles demonstrados –o importante é que façam o que precisa ser feito sem maiores freios morais, políticos ou jurídicos.

Líderes extremistas transformam o medo em ódio. Eles (ou elas) elegem os culpados (bandidos, migrantes, minorias étnicas, viciados etc.) e prometem a volta a um passado idealizado –que, por definição, jamais se concretizará.

Para que a política do ódio floresça, é necessário que surjam figuras públicas dispostas a semeá-la –e o Brasil, infelizmente, converteu-se em terreno fértil para isso.

Dados inéditos de pesquisa Datafolha/FBSP mostram que, para 69% dos brasileiros adultos, "o que este país necessita, principalmente, antes de leis ou planos políticos, é de alguns líderes valentes, incansáveis e dedicados em quem o povo possa depositar a sua fé".

O cenário fica ainda mais tenebroso se somarmos aqueles que concordam em parte com a frase acima. Nesse caso, o percentual sobe para 85% sujeitos a influências autoritárias, para os quais leis e projetos políticos pouco importam.

A frase citada acima, no contexto da pesquisa, é uma tradução de uma das perguntas feitas no clássico estudo de Theodor Adorno, de 1950, sobre personalidade autoritária. Adorno, um judeu alemão emigrado para os EUA, buscava compreender como o nazismo teve tantos adeptos na Alemanha da primeira metade do século 20.

Sua metodologia até hoje se mantém uma referência mundial. Na investigação, ele considerava algumas dimensões principais: adesão a valores tradicionais e convenções sociais; submissão e aceitação incondicional de um líder reconhecido como legítimo; agressividade e predisposição a hostilizar minorias.

Para Adorno, períodos de crise com as características que vemos hoje, em que as pessoas se sentem inseguras e impotentes, são férteis para o avanço do autoritarismo e de líderes que tentam se converter em messias capazes de reconfortar a população e reduzir o pânico.

BOLSONARO
Diante desses dados, é quase impossível deixar de temer pelo nosso futuro ao pensar na pré-candidatura de Jair Messias Bolsonaro à Presidência da República. As chances do deputado federal pelo PSC, o Partido Social Cristão, são mais reais do que gostaríamos de acreditar.

Há inúmeros relatos sobre multidões atraídas a escolas e ginásios nos quais o ex-capitão do Exército vocifera despautérios contra os direitos civis e humanos, destila ódio e intolerância e projeta uma visão de mundo descolada da realidade.

No plano econômico, Bolsonaro louva as riquezas minerais do "Brasil grande" como a solução dos nossos problemas.

Qualquer semelhança com a narrativa tornada célebre nos anos 1970 por Fidélis dos Santos Amaral Netto (1921-1995), "o repórter", não é mera coincidência. Tem a finalidade de retomar a ideia difundida na ditadura militar (1964-1985) de que somos uma nação "abençoada por Deus" e vocacionada a ser a grande fornecedora de matérias-primas para o mundo –uma ideia que aceita nossa condição de coadjuvante no xadrez global.

Dois aspectos chamam a atenção nesse quadro. Primeiro, Bolsonaro é um fenômeno não só presencial mas também digital. No Facebook, no começo deste mês, tornou-se o político mais popular do Brasil, com 4,3 milhões de seguidores. Em segundo lugar, e talvez mais importante, o deputado federal consegue tamanha projeção mesmo sem nenhuma estrutura partidária e cada vez mais apoiado por policiais e seus familiares.

A onda por ele surfada pode ser compreendida por meio de outras questões da pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Por exemplo, 60% dos adultos brasileiros dizem concordar com a frase "a maioria de nossos problemas sociais estaria resolvida se pudéssemos nos livrar das pessoas imorais, dos marginais e dos pervertidos"; 81% declaram que "a obediência e o respeito à autoridade são as principais virtudes que devemos ensinar a nossas crianças". São dois indicativos claros de aderência ao discurso de ordem.

Destaque-se também que, para 64% dos entrevistados, "todos devemos ter fé absoluta em um poder sobrenatural, cujas decisões devemos acatar". Entre os integrantes das classes D e E, são 71%.

RELIGIÃO
Não é por acaso, portanto, que Bolsonaro gravou uma cena sendo batizado no rio Jordão pelo Pastor Everaldo, em uma aproximação com um líder evangélico. Não se trata de movimento instrumental, mas orgânico, pois cria simbioses complexas entre Estado, governos e religião. O Estado laico é visto como imoral.

Ainda de acordo com a mesma pesquisa e com a relação Estado-religião, 53% dos entrevistados concordam com a frase "o policial é um guerreiro de Deus para impor a ordem e proteger as pessoas de bem".

Ou seja, quem atrair os policiais, abandonados por todos os governos desde a redemocratização, terá condições de impor o seu modelo de ordem social e pública ao restante da população. A pesquisa mostra que expor os quase 700 mil policiais brasileiros à própria sorte e sob péssimas condições de trabalho é deixá-los à mercê de líderes populistas e extremistas.

É algo que tem sido explorado por Bolsonaro e outros segmentos políticos, que buscam conquistar a legitimidade pública com o estabelecimento da hegemonia de um padrão de moralidade que valoriza o indivíduo e o sagrado e despreza o coletivo. Trata-se de caminho muito mais sutil e poderoso do que a defesa de um golpe militar clássico. É o salve-se quem puder da violência urbana e da corrupção.

O tempo social de revisão de conquistas coletivas não nos permite menosprezar a possibilidade de Bolsonaro ir para o segundo turno ou mesmo vencer a disputa presidencial. Sua plataforma de extrema direita está longe de ser liberal. É reacionária, pois propõe o regresso a padrões morais do passado e o retrocesso nos direitos políticos, civis e sociais.

Bolsonaro, todavia, não é o único a se beneficiar das características populacionais identificadas na pesquisa Datafolha/FBSP. A bem da verdade, os mesmos dados ajudam a compreender o apoio maciço à Lava Jato e ao juiz Sergio Moro, visto como cruzado da moral e dos bons costumes, apesar de a operação sofrer cada vez mais críticas de natureza jurídica.

LULA E DORIA
Ao mesmo tempo, os dados ajudam a explicar por que Lula (PT) mantém a liderança das intenções de voto para 2018.

O ex-presidente soube como poucos operar programas de redução da pobreza e associar à sua figura a ideia do político preocupado com ganhos sociais. Como a pesquisa atesta, a população escolhe, antes da lei, "alguns líderes valentes, incansáveis e dedicados" em quem possa depositar sua fé.

É o que tem permitido a Lula sobreviver ao discurso moralizador, embora o PT seja um dos protagonistas da crise ética e dos escândalos de corrupção que assolam o país. A questão moral e os aspectos jurídicos ficam em segundo plano.

João Doria, por seu turno, com intervenções nas redes sociais e piruetas midiáticas para alcançar Lula e Bolsonaro na preferência dos eleitores, demonstra que o PSDB não fica atrás do PT. Submete-se docilmente ao capitalismo predador e às tentações autoritárias que regem os sentidos da política no país. Ao se apresentar como gestor e representante da antipolítica, o prefeito de São Paulo imagina corresponder ao anseio pelo líder independente, forte e carismático.

Seu campo, porém, é o político, no qual não perde chance de travar batalhas contra o PT e evita debater os efeitos das iniciativas sob sua alçada (velocidade nas marginais, transparência sobre doações privadas, ações na cracolândia etc.).

PT e PSDB deixaram-se seduzir pelo "Zeitgeist" (espírito do tempo) aqui descrito e pela realpolitik. Hoje, não só não têm projeto para fortalecer a agenda de direitos civis e políticos como só se lembram de sua existência quando precisam dialogar com parcelas da sociedade que tentam resistir às tentativas de criminalização e de aniquilação da política. Enquanto isso, foram e vão sendo tutelados pelo PMDB e sua base aliada porosa.

Bolsonaro, Lula, Doria ou ainda algum "outsider" oriundo das fileiras do Judiciário ou do Ministério Público disputam o papel de "salvador da pátria", numa espécie de sebastianismo atávico. Para lidar com o medo e com a violência, contudo, quem dirigir o país precisará priorizar a reconfiguração do campo da segurança pública, exigindo enorme capacidade política daqueles que negam a política.

Há consenso de que as atuais respostas públicas à violência estão fadadas ao fracasso, mas são poucos os pontos de convergência quanto às soluções e aos projetos de mudança para alterar esse quadro.

Se flertamos com o autoritarismo e a intolerância no plano político, no campo da segurança pública convivemos com a paralisia e frustações múltiplas –o que retroalimenta as tentações autoritárias.

A atuação do Estado e de suas várias agências, como não poderia deixar de ser, afeta a sensação de segurança. Se a população confia pouco na polícia, como é o caso brasileiro, a percepção de insegurança tende a crescer.

Estudos mostram que as estratégias tradicionais de policiamento, com foco na criminalidade, têm efeitos pequenos sobre o medo. O policiamento comunitário, por sua vez, embora tenha pouco impacto nas taxas de criminalidade, amplia a sensação de segurança.

Fazer patrulhamento por manchas criminais, sobretudo nos casos de roubo, também pode aumentar a sensação de segurança. A opção das polícias brasileiras, todavia, tem sido priorizar o controle do criminoso (não do crime), deixando de lado ações que poderiam reduzir a insegurança.

Outro aspecto óbvio, mas ignorado por inúmeros governos, é que trocas de tiros entre policiais e criminosos aumentam significativamente o medo da população.

CRISES ESTADUAIS
Segurança pública, entretanto, não é campo exclusivo das polícias. Boa parte dos problemas associados ao medo, especialmente incivilidades e desordens, é da competência de outras agências estatais, como os centros de atendimento psicossociais, as companhias de limpeza e iluminação urbana e a vigilância de bares e boates, entre outros. Poucos desses serviços funcionam a contento no Brasil.

Mesmo num cenário adverso, vários Estados adotaram programas que visavam melhorar as políticas de segurança. São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco, Minas Gerais, Bahia, Espírito Santo, Distrito Federal, Ceará e outros foram desenhando ações que tinham na redução dos homicídios e dos roubos sua meta prioritária. Conseguiram, num primeiro momento, diminuir taxas de criminalidade.

Nos últimos dois anos, porém, a violência e o crime voltaram a ser um problema sem solução à vista. O Brasil vive, para além do gargalo econômico, uma profunda crise republicana e federativa de implementação e coordenação de ações na segurança pública.

Há questões muito mal resolvidas entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, bem como entre polícias civil e militar e Ministério Público. Também há confusão de papéis entre União, Distrito Federal, Estados e municípios.

O fato é que a democracia brasileira nos últimos 30 anos, como afirma o sociólogo José de Souza Martins, tem sido a multiplicação dos comportamentos autoritários gestados na ditadura.

Nessas três décadas, a criminalidade organizada se difundiu, a corrupção ganhou a casa dos bilhões de reais e o medo, a insegurança e a incerteza se tornaram componentes hegemônicos da estrutura de personalidade dos brasileiros.

Há saídas? Sim, e elas passam pela mobilização de múltiplos atores em torno de um projeto democrático de mudança de práticas e comportamentos.

Se não quisermos ser atropelados pelas tendências autoritárias do nosso tempo social, temos que lutar para, no mínimo, preservar a agenda de direitos civis e humanos a duras penas conquistada no decorrer dos anos 1980.

Se não fizermos nada, a segurança pública se estabelecerá como o grande calcanhar de aquiles da nossa frágil democracia.

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Arthur Trindade Maranhão Costa, 48, é professor da Universidade de Brasília e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Renato Sérgio de Lima, 47, é diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e professor do departamento de gestão pública da FGV.

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