segunda-feira, 5 de junho de 2017

Tribunais em tempos de crise | Oscar Vilhena Vieira

Folha de S. Paulo / Ilustríssima

RESUMO Para analisar o julgamento da chapa Dilma-Temer no TSE, que será realizado nesta terça (6), autor relembra o histórico recente do Judiciário diante da Lava Jato, de um lado, e do impeachment de Dilma, de outro. Argumenta que, quando se trata de proteger a integridade da democracia, os tribunais não podem ser omissos.

Protagonismo crescente e proteção das regras do jogo democrático

O sucesso de um regime democrático, e mesmo a sua sobrevivência, está diretamente associado à adesão dos principais atores políticos, sociais e institucionais às regras e aos princípios definidos por um pacto constitucional.

Por esse motivo, a primeira função de uma Constituição democrática é estabelecer normas e procedimentos que balizem a competição eleitoral e limitem a ação dos governantes, de forma que não abusem do poder que lhes foi delegado.

É preciso ter essas considerações em mente ao analisar o crescente protagonismo do Judiciário, pois a ele tem cabido papel fundamental na proteção das regras do jogo democrático.

Por não serem eleitos, magistrados não devem agir politicamente. Sua autoridade deriva da capacidade de justificar suas decisões como consequência clara do que está previsto na lei e, em especial, na Constituição. A maior contribuição que os tribunais podem dar, sobretudo em momentos de crise, é proteger a integridade do processo democrático, assim como os direitos que lhe são constitutivos.

Nos últimos anos, a Operação Lava Jato, dada sua dimensão, seus métodos e seus resultados, bem como a notoriedade de muitos de seus investigados, proporcionou exposição de promotores e magistrados jamais vista por aqui.

O Supremo Tribunal Federal (STF), num intervalo de tempo maior, declarou inconstitucionais diversas leis e mesmo emendas à Constituição aprovadas pelo Congresso, monitorou o processo de impeachment de dois presidentes da República e determinou o afastamento ou a prisão de parlamentares acusados de participação em esquemas criminosos. São decisões tomadas dentro de sua vasta área de atuação, mas que ainda assim geram atrito com os outros Poderes.

Não se trata de fenômeno restrito ao Brasil. Com a deterioração de partidos ou Parlamentos e a ascensão de líderes populistas ou autocráticos, cortes têm sido cada vez mais chamadas a interferir na vida política de democracias jovens e velhas, como escreve o americano Samuel Issacharoff, em "Fragile Democracies: Contested Power in the Era of Constitutional Courts" (Cambridge University Press; democracias frágeis: poder contestado na era das cortes constitucionais).

Na eleição presidencial dos EUA no ano 2000, por exemplo, coube à Suprema Corte decidir o pleito, dando a vitória a George W. Bush sobre Al Gore. Agora, tribunais federais norte-americanos têm sido cruciais para o controle da legalidade dos atos de Donald Trump.

Na Colômbia, em 2010, a Corte Constitucional impediu a realização de consulta popular que facultaria a Álvaro Uribe disputar um terceiro mandato presidencial.

Em alguns casos, a atuação dos magistrados enfrenta resistência. Na Turquia de Recep Erdogan, centenas de juízes terminaram presos; na Rússia, ao tempo de Boris Iéltsin, a Corte Constitucional foi liquidada (e não será surpresa se Vladimir Putin imitar tais passos); na Venezuela chavista, o Tribunal Supremo passou a ser objeto de manipulação constante.

ESCALADA DE TENSÃO
Não é fácil saber quando há espaço para que as cortes exerçam sua jurisdição na proteção da democracia e do Estado de Direito sem o risco de serem dizimadas ou transformadas em órgãos subservientes, por força de novas nomeações.

Como regra, para os tribunais, fazer intervenções profundas no sistema político tem custo maior do que apenas policiar pequenas violações, na tentativa de evitar que elas se transformem num grande problema –quando esse se instala, contudo, como no caso com o qual se depara o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o custo de não intervir pode ser ainda mais elevado.

O fato é que, nesse jogo, os tribunais sempre sofrerão contestação por parte daqueles que se sentem ameaçados, sobretudo quando a validade de suas decisões puder ser juridicamente combatida, e a imparcialidade de seus magistrados, publicamente questionada.

É nesse contexto de escalada da tensão que se avizinha o julgamento da chapa Dilma-Temer no TSE.

Esse processo peculiar, que teve início despretensioso e se tornou robusto ao longo do tempo, não pode ser compreendido sem que se levem em conta as demais interações do aparato judicial com o sistema político –com destaque para a Lava Jato e o impeachment.

A análise desses casos ajudará a compreender as razões que levaram o Judiciário a adotar dois comportamentos quase opostos.

No contexto da Lava Jato, sobressai a veemência, quando não o ativismo, ao investigar, processar e julgar acusações de corrupção; no impeachment de Dilma, prevaleceu a deferência ao Legislativo, limitando-se o STF a proteger a integridade do julgamento encabeçado pelo Congresso, sem questionar seus resultados.

O objetivo neste artigo não é predizer o desfecho do julgamento no TSE, mas ponderar qual seria a atitude institucional mais defensável a ser assumida pela corte eleitoral neste momento de crise política aguda e subversão do processo democrático brasileiro.

A LAVA JATO
Iniciada há cerca de três anos, a Operação Lava Jato, embora tenha derivado de um caso quase fortuito –a prisão do doleiro Alberto Youssef–, não é obra do acaso nem feito exclusivo de um grupo de super-heróis.

É produto de uma estrutura regulatória e de uma arquitetura institucional que, com defeitos e qualidades, vêm sendo moldadas a partir da Constituição de 1988, como salienta Theo Dias, advogado que defende a Odebrecht.

A incorporação do instituto da delação premiada alterou de modo significativo o poder de investigar e responsabilizar quem participa de organizações criminosas. Sem essa ferramenta, dificilmente a Lava Jato teria conseguido conhecer as entranhas do esquema de corrupção que corroeu a política.

A operação também vem sendo muito efetiva graças à apropriação de instrumentos modernos de investigação por uma nova geração de juízes, procuradores e policiais, com sofisticada capacitação técnica e autonomia institucional.

Os investigadores da Lava Jato passaram a fazer uso sistemático de interceptações telefônicas, buscas e apreensões, quebra de sigilo bancário e, mais recentemente, ações controladas. Esse conjunto alterou os parâmetros da apuração criminal no Brasil.

Por outro lado, é indispensável reconhecer que a Lava Jato maximizou seus resultados graças à decretação de centenas de prisões processuais e conduções coercitivas. Essas iniciativas, que deveriam ser utilizadas apenas de forma excepcional, quando a liberdade do acusado representasse risco para a integridade do processo, passaram a integrar o repertório ordinário da operação.

Sem conhecer cada um dos processos, é difícil dizer se os pressupostos legais estavam presentes em todas essas prisões provisórias.

Importa destacar, no entanto, que o enrijecimento penal visto em Curitiba foi sistematicamente referendado pelas demais instâncias do Judiciário, inclusive por magistrados de tradição liberal dentro do próprio STF.

Além dessas novas táticas processuais e de investigação, a mudança da orientação do Supremo, que passou a autorizar a execução provisória da pena após decisão de segundo grau, foi o ponto de inflexão a incentivar um grande número de acordos de colaboração premiada. Com o fim da "interminabilidade" do processo e sem a possibilidade de o réu recorrer "ad eternum" em liberdade, alterou-se a direção dos incentivos.

POLÊMICAS
Essa decisão, embora pareça a mais sensata –inclusive do ponto de vista do sistema internacional dos direitos humanos, que prevê garantia apenas do duplo grau de jurisdição–, tornou-se polêmica porque a Constituição assegura "que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". O trânsito em julgado só ocorre quando não há mais recurso possível.

Sem esse alinhamento entre as diversas instâncias do Judiciário, não se teria chegado aos resultados surpreendentes obtidos pela Lava Jato, sobretudo quando se considera o histórico de impunidade daqueles que detêm poder e recursos financeiros no Brasil.

É preciso destacar ainda que os protagonistas da operação fizeram uso ostensivo de estratégias de comunicação para obter apoio público às investigações. Apesar de serem heterodoxas, tais ações não podem ser frontalmente criticadas quando utilizadas pelo Ministério Publico dentro dos limites da legalidade. O problema surge quando os vazamentos se transformam em estratégia de informação.

Por sua vez, a crítica à suposta parcialidade das investigações vem sendo matizada graças ao avanço sobre outros grupos políticos. Hoje, fica evidente a abrangência "ampla, geral e irrestrita".

Encontram-se sob investigação nada menos do que quatro ex-presidentes (José Sarney, Fernando Collor, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff), um candidato a presidente (Aécio Neves) e um presidente em exercício (Michel Temer). Isso sem falar no cerco inédito a parlamentares de inúmeras legendas e a empresários dos círculos mais poderosos.

Se a Lava Jato inaugurou novo capítulo na história do combate à corrupção, ela também aponta para fragilidades jurídicas e institucionais. Nesse campo, terminaram expostas deficiências nos mecanismos que deveriam prevenir crimes contra a administração pública. Impõe-se um amplo trabalho de reforma voltado a:

a) fortalecer o sistema de governança empresarial, pública e privada, com a adoção de mecanismos rígidos de "compliance";

b) promover maior transparência e competitividade nas contratações públicas, inclusive com a presença de empresas estrangeiras, para reduzir o impacto de um mercado cartelizado;

c) reduzir os entraves burocráticos e regulatórios que criam oportunidades para arranjos espúrios;

d) aprimorar os sistemas bancário e administrativo de controle da lavagem de dinheiro;

e) dar mais transparência aos mecanismos de promoção de incentivos fiscais que são utilizados para obtenção, como moeda de troca, de doações de campanha ou mera corrupção.

Ao desvendar o enorme esquema de corrupção na Petrobras, a Lava Jato também abriu espaço para que se percebesse a assombrosa fragilidade da democracia brasileira, contaminada por uma relação promíscua e parasitária entre atores públicos e privados, que manipulam o sistema político-eleitoral, convertido em balcão de negócios.

Licitações fraudulentas para obras e serviços públicos, medidas provisórias sob encomenda, isenções fiscais ou acesso a empréstimos de bancos estatais converteram-se em contrapartidas de pagamentos realizados a pretexto de contribuição eleitoral.

O IMPEACHMENT
Essa realidade, que foi sendo paulatinamente desvendada pela Lava Jato, contribuiu para que crescesse o movimento de oposição a Dilma. Não se pode negar que as grandes manifestações em todo o país estimularam deputados e senadores a levar adiante o duro processo de impeachment, até hoje contestado pelos partidários da ex-presidente.

Como no caso de Collor, todos os passos da ação conduzida pelo Congresso foram acompanhados de perto pelo Supremo. Após cada movimento do então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, aliados de Dilma preparavam um recurso judicial.

A própria admissão do pedido de impeachment foi questionada no STF. Eram dois os argumentos. Primeiro, afirmava-se que não havia justa causa para instaurar o processo. Em segundo lugar, sustentava-se que a iniciativa de Cunha era inválida; sua única finalidade seria vingar-se da petista, que retirou o apoio que seu partido dava ao deputado fluminense no Conselho de Ética da Câmara.

O Supremo, também como à época de Collor, limitou-se a deliberar sobre a integridade do procedimento fixado pelos parlamentares.

É evidente que o processo tinha máculas, decorrentes da condução de Cunha. Porém, quando a base de sustentação do governo trocou de lado, unindo-se à oposição, Dilma ficou sozinha. A incapacidade da ex-presidente de manter apoio no Parlamento facilitou a condenação.

Dada a abertura das normas que regulam o crime de responsabilidade, bem como a autoridade designada pela Constituição para processar e julgar o presidente, o STF evitou analisar o mérito da questão, reafirmando a natureza predominantemente política do impeachment no Brasil –ainda que devam ser respeitados contornos jurídicos.

Ao agir dessa maneira, o Supremo contribuiu para transformar o impeachment numa espécie de voto de desconfiança em nosso regime presidencialista. Para os apoiadores de Dilma, no entanto, a complacência da corte apenas legitimou um golpe parlamentar.

O STF manteve a mesma deferência em relação à decisão do Senado de não aplicar a Dilma a pena de suspensão dos direitos políticos –afinal, cabia aos senadores dar a última palavra no julgamento.

NOVA COMPOSIÇÃO
Difícil saber qual será a atitude do Supremo quando chegar o momento de processar e julgar deputados e senadores. Dada a mudança na composição do tribunal desde o julgamento do mensalão, os precedentes formados naquele momento não necessariamente guiarão as novas decisões.

Ao mesmo tempo, deve-se considerar que as alterações na segunda turma deixaram o relator da Lava Jato, ministro Edson Fachin, em posição de desvantagem numérica. Prova disso foram os três habeas corpus contra decisões de Sergio Moro concedidos nas últimas semanas.

Por fim, cumpre verificar a atitude do STF quando analisou pedidos de afastamento de parlamentares acossados pela Lava Jato.

No caso mais midiático, julgado ainda com a presença do ministro Teori Zavascki, a corte decidiu afastar Eduardo Cunha, sob o argumento de que ele obstruía a atuação do Conselho de Ética.

Para os críticos, a decisão abriu um precedente perigoso, na medida em que a Constituição abriga apenas a hipótese de afastamento de congressista após trânsito em julgado de sentença condenatória.

Para Teori, ao manipular o Conselho de Ética, Cunha não deixou alternativa ao tribunal. O uso dos poderes cautelares era necessário para garantir que não se inviabilizasse o processo parlamentar.

Esse mesmo precedente, aplicado ao senador Aécio Neves sem resistência por parte do Senado, foi flagrantemente descumprido quando o Supremo, por decisão individual, determinou o afastamento do senador Renan Calheiros.

Em resumo, o STF agiu durante o julgamento de Dilma com a deferência assumida no processo de Collor. Fez isso por entender que a Constituição deixa claro que, no caso de impeachment, a palavra final cabe a políticos, não a juízes.

Diante da Operação Lava Jato, no entanto, o Supremo (em sua composição anterior) agiu de forma resoluta com o propósito de assegurar a eficácia das decisões formuladas em Curitiba, seja ao manter prisões processuais decretadas por Sergio Moro, seja ao revisitar sua jurisprudência, permitindo a execução provisória da pena após decisão de segunda instância.

TSE
Com a aproximação do julgamento da chapa Dilma-Temer, surge a pergunta legítima sobre como deverá se comportar o TSE, a quem foi atribuída a responsabilidade de proteger o processo democrático, com autoridade para impugnar mandatos conquistados de modo fraudulento.

Isso significa, em outras palavras, que o presidente da República pode perder seu mandato por força de uma sentença judicial.

Esse processo diz muito sobre as fragilidades de nosso sistema representativo.

Ainda em 2014, a coligação de Aécio Neves propôs duas ações de investigação para apurar abusos de poder econômico por parte da chapa Dilma-Temer. As acusações não eram suficientes para revogar um mandato popular, muito menos as provas a princípio apresentadas. Outras duas ações foram apresentadas no início de 2015.

Esse processo guarda inúmeras ironias. Com o impeachment de Dilma, os interesses de Aécio mudaram por completo –e a ação no TSE passou a constituir um caso bizarro de fogo amigo processual.

A segunda ironia está ligada ao fato de que, embora as provas originais fossem frágeis, ao converter o julgamento em diligência, o tribunal abriu a possibilidade de colheita de novas evidências.

Essa medida está em conformidade com a legislação, além de ser um procedimento cauteloso voltado a assegurar a busca da verdade real, com o máximo de atualidade, como salienta o professor Luciano Godoy, da FGV.

Com isso, abriu-se um canal de comunicação entre o processo da Lava Jato e a ação contra a chapa Dilma-Temer. Também foram autorizados novos depoimentos, muitos deles prestados por delatores que trabalharam muito próximo da campanha PT-PMDB.

Com a abundância de informações e provas, a situação jurídica da chapa se complicou. Sobra apenas o argumento moral de que a campanha de Aécio também se utilizou de mecanismos semelhantes de financiamento. Isso, porém, não deve ter qualquer consequência jurídica para o desfecho do caso.

Como o TSE tem competência para decidir o destino de mandatos obtidos de forma fraudulenta, não resta dúvida de que a única atitude aceitável é responder com clareza e objetividade se os fatos apurados no relatório do ministro Herman Benjamin configuram alguma das hipóteses de cassação previstas na legislação.

Não há espaço para omissão.

Se é fato que a crise política deve ser resolvida politicamente, ao Judiciário, nos termos da lei, cumpre proteger a democracia, contribuindo para a desobstrução dos canais de representação, de forma que os cidadãos possam retomar o controle de seu destino político.

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Oscar Vilhena Vieira é professor de direito na FGV-SP e colunista da Folha.

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