sexta-feira, 7 de julho de 2017

1932, a vitória dos vencidos | José de Souza Martins

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana


Passados 85 anos do início da Revolução Constitucionalista de 1932, convém lembrar desse ontem para compreender o nosso problemático hoje. Os paulistas já haviam sido vítimas da revolta militar sangrenta de 1924, que matara 513 pessoas só na cidade de São Paulo, civis em grande número. Em 1932, isso ainda estava dolorosamente na memória de todos, nas famílias mutiladas, nas orfandades, nos bairros operários. Um dos objetivos de 1924 era a ditadura militar para pôr ordem na República. O povo era adjetivo.

Não se fala sobre isso nem se fala sobre as manifestações daquele 23 de maio de 1932, estimuladas por um comício na Praça do Patriarca, que abriram caminho para a revolta. Precipitadas, aliás, por inquietações decorrentes da decisão militar de desmembrar áreas do território paulista, na região da Mogiana, e anexá-las ao Estado de Minas Gerais. A multidão se dirigiu para a Praça da República, esquina da rua Barão de Itapetininga, onde tinha sede a Liga Revolucionária, da facção tenentista que participara dos episódios de 1924 e que apoiava Getúlio. Foi recebida à bala. Em lugar hoje assinalado por uma placa, caíram as quatro vítimas cuja primeira letra do nome formará o acrônimo MMDC, forte poder simbólico da revolução.

A Revolução de 9 de Julho foi a grande revolução política do Brasil. Em 1932, o país descobriu os limites de nossa democracia nascente, que nos tolhem até os dias de hoje. Uma democracia internamente corroída pelo oligarquismo e pela corrupção. Mas descobriu, também, nossas possibilidades de transformações econômicas e sociais.

É um erro tentar compreender a Revolução de 1932 enclausurando-a no campo de batalha. As principais consequências da revolução se desenrolaram depois de cair a última trincheira. As verdadeiras revoluções se expressam, na vitória ou na derrota, nos desdobramentos, nos resultados desconstrutivos de seus efeitos e nos consequentes desafios para reconstruir as sociedades por elas arruinadas. Aqui também foi assim.

Não obstante a derrota militar, a revolução solapou o poder dos mandões de província, viabilizou a precedência da nação sobre o descabido poder do localismo subdesenvolvido. Abriu para o país as comportas da modernidade e do efeito transformador de suas contradições. Rompeu as barreiras que separavam o Brasil arcaico, oligárquico e senhorial, clientelista, de raízes na escravidão, do Brasil moderno, da indústria, dos direitos trabalhistas e sociais, da revolução educacional, técnica e científica. Vencedor, Getúlio teve que se empenhar nessa ruptura.

Ele compreendeu que o intuito modernizador da Revolução de Outubro, que o levara ao poder, passava por São Paulo e pelos vencidos. Sem eles, a revolução estava derrotada. Os vencidos também compreenderam que nada conseguiriam se não usassem o vencedor em seu projeto histórico. Getúlio e os industriais de São Paulo já haviam se aproximado. Inventaram uma solução keynesiana antes de Keynes para a grave crise econômica que vinha desde 1929, a da renda que gera emprego que, por sua vez, gera renda. Perfilhou o industrialismo de Roberto Simonsen, industrial, fundador da Fiesp e da Escola de Sociologia e Política. O mesmo Simonsen que apoiara a revolução, de cujos conselhos Getúlio passou a se socorrer.

O maior ato revolucionário dos vencidos foi a criação da Universidade de São Paulo. Não só pela importância que tem a criação de uma universidade desse porte num país atrasado. Mas pelas grandes reorientações de curso histórico, tanto social quanto político, pela revolução na mentalidade brasileira. Uma universidade que nasceu na prisão, que saiu da cabeça de seu fundador, Júlio de Mesquita Filho, vencida a revolta, dois dias depois de preso, quando pediu à mulher que lhe levasse dois livros sobre educação, escritos pelo sociólogo francês Émile Durkheim.

Mesquita estabeleceu como condição da criação da USP que fosse ela uma universidade pública, laica e gratuita. Num país de governo autoritário, de propensão fascista, uma universidade que criasse uma intelectualidade democrática, para ocupar todo o sistema de ensino, da escola primária à escola superior com os valores da ciência, da liberdade e da democracia. Uma universidade voltada para a inclusão das inteligências das novas gerações que no oligarquismo ficariam confinadas nas funções subalternas da economia e da subserviência administrativa.

Essa foi a verdadeira trincheira dos que lutaram em 32, dos que morreram pela causa da mudança em nome da liberdade política. Até hoje, é essa a única revolução brasileira, porque revolução é o que revoluciona em benefício de todos, não o que mantém, conserva e emperra em benefício de poucos.
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José de Souza Martins é sociólogo. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “Linchamentos – A Justiça Popular no Brasil” (Contexto).

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