segunda-feira, 31 de julho de 2017

Presidencialismo de proposição | Marina Silva

- Valor Econômico

Para obter a maioria de votos favoráveis de parlamentares, Temer promove concessões sem limites

Ainda não é possível ter uma visão completa, mas já podemos colocar a operação Lava-Jato como uma das maiores contribuições à evolução política do Brasil. Podemos considerá-la uma continuidade do processo de redemocratização, que quase foi interrompido quando, com o fim do regime militar e as eleições diretas dos governos, estabeleceu-se uma democracia incipiente e de baixa intensidade.

O trabalho da Justiça, do Ministério Público e da Polícia Federal mostrou que o Estado havia sido dominado por um sistema perverso, tanto mais forte quanto menos aparente. Esse esquema, um polvo que estendeu seus tentáculos em toda a vida institucional do país, nasceu nas brechas do regime presidencialista "de coalizão", que emergiu nos anos de reconstrução democrática como uma forma de mediação entre os poderes Executivo e Legislativo e que acabou se degenerando na sua pior expressão: alianças voltadas não para o ato de governar, mas para perpetuar grupos no poder.

Esse esquema hoje é constrangedoramente visível. As "negociações" com o Congresso, usadas pelo presidente Michel Temer para defender-se da denúncia da Procuradoria Geral da República, expõe os limites e o estado avançado de degeneração do modelo de "governabilidade". Para obter a maioria de votos favoráveis de parlamentares, Temer promove concessões sem limites: legaliza terras públicas invadidas por grileiros, distribui bilhões em emendas parlamentares, anistia dívidas milionárias de empresas e de produtores ao Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural (Funrural). E o chamado ajuste das contas públicas, afinal, transforma-se em um perverso mecanismo de engordar as contas de sua base de apoio.

Com uma ampla bancada ruralista no Congresso, o presidente defende a dispensa da necessidade de licença ambiental antes do início de empreendimentos na agricultura e na pecuária extensivas (Lei Geral de Licenciamento Ambiental) e restringe o futuro da demarcação de mais de 740 terras indígenas, estabelecendo que apenas terras ocupadas antes da promulgação da Constituição de 1988 possam ser consideradas para a demarcação (parecer da AGU). O esfacelamento da agenda ambiental, ferindo quase de morte a esperança de um Brasil sustentável, é parte da estratégia de sobrevivência do governo.

É isso que justifica o vergonhoso recuo de Temer ao veto das Medidas Provisórias 756 e 758, que iriam diminuir as áreas preservadas da Amazônia. O tempo do veto durou menos de um mês, e ficou claro que foi apenas uma jogada para "norueguês ver". Mesmo assim, não deu certo. O governo da Noruega decidiu cortar o repasse dos valores do Fundo Amazônia, proporcionais à queda do desmatamento. Após a viagem ao país nórdico, na véspera do recesso parlamentar, o presidente enviou ao Congresso um projeto de lei que retoma o conteúdo das MPs e reduz o nível de proteção de 350 mil hectares da área da Floresta Nacional do Jamanxim, no Pará.

O projeto transfere terras públicas de uma das regiões mais ameaçadas pelo desmatamento e grilagem da Amazônia para pessoas que resolveram afrontar a lei e as instituições. Se aprovado, o projeto vai regularizar áreas desmatadas e ocupadas irregularmente com base na Medida Provisória 759, a MP da grilagem, que possibilita a legalização massiva de áreas públicas invadidas, abrindo espaço para o aumento do desmatamento e o acirramento dos conflitos fundiários. Somente na Amazônia, a medida deverá presentear grileiros com 40 milhões de hectares de terras públicas.

Regularizando a impunidade dos criminosos ambientais em troca de apoio parlamentar, Temer inaugura outra espécie de mensalão, o mensalão verde. Os interesses imediatos de alguns setores no Congresso ampliam o retrocesso socioambiental iniciado no governo de Dilma Rousseff e aprofundado no governo de seu ex-aliado e vice, como mostra o aumento de quase 60% do desmatamento entre 2014 e 2016. O retrocesso prejudica ainda mais a imagem internacional do Brasil e as perspectivas de recuperação da credibilidade e dos investimentos para uma nova economia.

As lições trazidas pela Operação Lava-Jato apontam para a importância de se resgatar o debate de programas estratégicos para projetar o Brasil do futuro. Os grandes partidos que se revezaram no poder nos últimos anos (PT, PSDB e PMDB) não foram capazes de travar essas discussões para o bem do país. A crise de representação também se aprofundou pela ausência de proposição. A falência do presidencialismo de coalizão, termo cunhado pelo cientista político Sérgio Abranches, pressuposto a partir da constatação de que a Presidência depende de acordos políticos e de alianças partidárias para sustentação do governo, nos coloca diante do desafio de fundar um outro tipo de governabilidade.

Temos que pensar como institucionalizar aquilo que conquistamos a duras penas e passamos a perder: estabilidade econômica, redução da pobreza, credibilidade internacional, fortalecimento das instituições. E já sabemos que isso só será possível quando o Estado não for mais fatiado e distribuído aos grupos que impõem sua própria agenda, em detrimento do que é estratégico para o país. O Brasil precisa voltar a enxergar seu futuro.

Essa é uma tarefa da sociedade, apoiando e apoiando-se no trabalho de desmonte do sistema de corrupção que algumas instituições têm realizado, com destaque para a Operação Lava-Jato. Devemos avançar na construção de um novo ambiente institucional em que a política volte a ser representativa e - especialmente - propositiva. Temos que ser capazes de aproveitar as melhores competências disponíveis no setor público, privado e plural (universidades, ONGs, sindicatos, associações e movimentos sociais, como tão bem conceitua o professor Henry Mintzberg no livro "Renovação Radical"). Somente assim, o futuro do Brasil não será constrangido a ser um mero retorno ao passado.

A tarefa do Brasil pós-Temer será dar surgimento a um presidencialismo de proposição, que pode, enfim, iniciar a transição para um novo momento da evolução política do país, que devolva aos brasileiros sua soberania, ressignifique a ação política, fortaleça a República e democratize a democracia.
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Marina Silva, ex-senadora e fundadora da Rede Sustentabilidade, foi ministra do Meio Ambiente e candidata à Presidência da República em 2010 e em 2014.

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