quinta-feira, 27 de julho de 2017

Terrível dilema | José Eli da Veiga

- Valor Econômico

Não estariam cegos os seguidores de Prometeu que apostam na singular capacidade de adaptação da espécie humana?

O aniquilamento biológico em curso vem sendo subestimado justamente por quem melhor monitora a erosão global da biodiversidade. A própria IUCN ("International Union for the Conservation of Nature") não percebe que cria ilusões sobre a real velocidade da sexta extinção em massa da história da Terra ao só considerar o desaparecimento de espécies, em vez de também contabilizar a degringolada das populações de cada espécie vegetal e animal, assim como a míngua de suas abrangências geográficas.

Essa foi a mensagem de um artigo científico que no último dia 11 mereceu manchetes e editoriais dos melhores jornais do mundo. Publicado à véspera nos PNAS ("Proceedings of the National Academy of Sciences") pelos ecólogos Gerardo Ceballos (Unam), Paul Ehrlich e Rodolfo Dirzo (Stanford), trouxe mais uma eloquente evidência da brutal intensificação dos efeitos negativos que as atividades humanas estão exercendo sobre os ecossistemas que estruturam a biosfera. E de gravidade realmente alarmante, pois tais impactos vêm provocando atrofia de muitos dos serviços prestados pela natureza às mais elementares e essenciais necessidades humanas.

Quantas sirenes do gênero precisarão ser acionadas para que o alerta seja ouvido? E, quando isso acontecer, ainda haverá tempo para significativa mudança de rumo? Dupla interrogação para a qual rivalizam duas respostas.

A mais frequente - talvez até dominante entre pesquisadores das ciências naturais - foi repetida com muita ênfase na conclusão do citado artigo: prazo máximo de duas ou três décadas para uma ação efetiva. Perspectiva que não poderia ser mais lúgubre para o futuro de todas as formas de vida.

Os pesquisadores das humanidades que mais compartilham tal avaliação tentam explicitar o que deveria ser, então, a indispensável "ação efetiva". Dizem que só se poderia evitar o pior com a superação do atual antropocentrismo e, sobretudo, do apego ao crescimento econômico, tachado de "fetichista". Sem isso não seria reduzida a insana escalada da interferência antrópica no que chamam de "sistema Terra". Tese exposta com veemência por Clive Hamilton, professor de ética pública da universidade Charles Sturt, de Camberra, no livro "Defiant Earth - The Fate of Humans in the Anthropocene" (Polity, 2017).

Esse modo de ver o problema equivale, na prática, a prognosticar breve derrocada das civilizações atuais, já que nenhuma delas poderá, no horizonte sensível, se livrar do antropocentrismo e buscar prosperidade sem crescimento. Por esse prisma, só se poderia mesmo contar com o início de algum tipo de armagedon em meados deste século.

Todavia, nem todos os cientistas naturais concordam com a tenebrosa visão de que a humanidade só dispõe de três decênios para que uma "ação efetiva" venha a contrariar a trágica degradação ambiental em andamento. Mesmo admitindo que tal narrativa tenha base científica - e enaltecendo sua ajuda em realçar a absurda perda de biodiversidade - ponderam que também é demasiadamente sinistra e depressiva. Pior: alienante e "desempoderadora".

Por acharem o discurso catastrofista incapaz de motivar justamente os segmentos sociais que talvez possam fazer a diferença, esses outros ecólogos se voltam à encorajadora e bem concreta proposta lançada pelo decano Edward O. Wilson (Harvard), no livro "Half-Earth: Our Planet's Fight for Life" (Norton, 2016): proteger e restaurar metade da superfície terrestre.

Do lado das ciências humanas, os pesquisadores mais propensos a aceitar essa segunda postura analisam a evolução das relações internacionais com o intuito de avaliar a probabilidade de que engendre razoável governança mundial da sustentabilidade. O que está muito longe de ocorrer, claro, porque os avanços institucionais da governança ambiental, promovidos desde 1972 essencialmente no âmbito das Nações Unidas, continuam muito distantes e desconectados da governança do desenvolvimento, bem mais antiga e dominada pelas organizações de Bretton Woods (Bird, FMI, OMC) e OCDE. Nesta visão alternativa, a pior incerteza dos próximos dois ou três decênios recai muito mais sobre eventual conflagração com uso de armas nucleares do que sobre os impactos de trapalhadas com o clima, com a biodiversidade terrestre e oceânica, ou com os ciclos biogeoquímicos, principalmente o do nitrogênio.

O dilema é terrível, portanto, pois não há como saber se estão mesmo equivocados os que anteveem um início de apocalipse em meados do século. Será que não estariam cegos os seguidores de Prometeu que apostam todas as fichas na singular capacidade de adaptação da espécie humana?

Mas há uma variável que parece ser igualmente decisiva para os dois lados, mesmo que por enquanto mal possa ser vislumbrada: uma democracia que se torne cada vez mais cosmopolita, em vez do deplorável fortalecimento das soberanias nacionais. É o que talvez possa impedir que os piores componentes dos dois cenários não demorem para se combinar: um brusco inverno nuclear que acelere exponencialmente a destruição ecossistêmica.
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José Eli da Veiga tornou-se professor sênior do IEE/USP (Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo) após trinta anos de docência no Departamento de Economia da FEA/USP (1983-2012).

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