domingo, 30 de julho de 2017

Um manifesto de ação | Cacá Diegues

- O Globo

Não podemos eliminar tradições que nos formaram desde o passado, mas a cultura brasileira não se resume a bumba meu boi. Temos uma grande aliada na tecnologia moderna

No último dia 25, o discurso de posse de Sérgio Sá Leitão, à frente do Ministério da Cultura, não foi uma convencional fala retórica. O novo ministro produziu um manifesto cultural contemporâneo, uma exortação da cultura brasileira, de sua formação popular aos meios de produção e difusão atuais. Da roda de samba ao crowdfunding.

O ministro empossado citou o escritor francês André Malraux, militante progressista que atendeu ao chamado de Charles De Gaulle, um presidente conservador, para criar o moderno Ministério da Cultura da França, que até hoje serve de modelo a todos os regimes democráticos que se interessam pelo assunto. Em 1959, diante de uma Brasília em final de construção, Malraux disse aquilo que Sá Leitão afirma ser um guia de sua gestão: “Ainda não sabemos ressuscitar corpos, mas precisamos saber ressuscitar sonhos”.

O que precisa ser ressuscitado entre nós são os sonhos de todas as gerações que no Brasil, através do tempo, se frustraram e se perderam atônicas, emparedadas por quem mandava no país, do autoritarismo militar ao caos da recessão, passando por elitismos e populismos de cada momento de desinteresse ou descuido com o caráter da nação, a sua cultura.

Esse discurso de posse nos diz que “a cultura é a melhor ferramenta para ressuscitar os sonhos dos brasileiros”. E indica a política desejada, quando afirma que a cultura é “a única atividade universal que apenas soma, jamais divide e sempre multiplica”. O novo ministro explica o que entende por cultura, quando desvenda os seus sinais: “Fazer e difundir cultura proporciona prazer, alegria e conhecimento”. Introduzindo, finalmente, o que seus antecessores quase nunca sacaram de fato: “A cultura está no cerne da economia criativa. Gera empregos, aumenta a renda, melhora a qualidade de vida”. Um programa de ação que podia ter sido escrito, em seu tempo, por Mário de Andrade ou Gustavo Capanema, servidores públicos de competência exemplar.

Sá Leitão cita os criadores que deseja como parceiros, no estabelecimento de rumos para uma política cultural. Gente como “profissionais do teatro, da dança, do circo, da literatura, da música, das mostras e festivais, do patrimônio histórico e artístico, do carnaval e de outras festas populares, do audiovisual, do design, do artesanato, das artes visuais, de museus e centros culturais, de games, das HQs, da moda, da arquitetura, da arte digital e de outros segmentos que compõem a cultura brasileira”.

É um consolo e uma esperança ouvir essa descrição dos formadores da cultura brasileira, de festas populares a arte digital, meios tão diversos e tão igualmente criados por corações e mentes de um mesmo Brasil que tanto desejamos. “O Brasil do século XXI, da revolução digital, da economia de transformação, da igualdade de oportunidades, do império da lei, da democracia consolidada, do Estado eficiente e eficaz, do protagonismo dos indivíduos, da mais profunda liberdade. Da arte de criar, empreender e viver”. Parece mesmo um sonho ressuscitado.

Citando calorosa saudação enviada por Gilberto Gil, Sá Leitão, na sua posse, tratou nosso músico, poeta e pensador como um mestre, a quem serviu no ministério que agora assume como titular. Como Gil, ele considera o Brasil “um país híbrido e miscigenado. Assim é a nossa cultura”. E acrescenta: “Esta é a nossa força”. A nossa única força original, eu diria.

As atividades culturais respondem hoje por 2,6% do Produto Interno Bruto (PIB) do país, empregam cerca de 900 mil profissionais e podiam empregar mais, se tivessem seu papel mais bem compreendido, se não fossem tão desprezadas pelos responsáveis, no poder, pelo mundo material, os que as tratam como ornamento. Seu PIB é maior do que o das indústrias têxtil, farmacêutica e de eletroeletrônicos, para mencionar três setores tradicionalmente bem-sucedidos. Setores que, aliás, também são impulsionados por incentivos fiscais, sem que ninguém reclame disso. Os números nos revelam que a atividade cultural paga mais impostos ao Estado, do que o Estado lhe aporta por meio de incentivos fiscais.

Não podemos eliminar as tradições que nos formaram desde o passado, mas a cultura brasileira não se resume a bumba meu boi. Temos uma grande aliada na tecnologia moderna, que devemos dominar para podermos usá-la sem submissão. O novo ministro sugere, por exemplo, o uso do crowdfunding para estimular o investimento incentivado de pessoas físicas na produção cultural.

Assim como “não cabe ao Estado produzir ou definir o que ée o que não é cultura”, como disse Sérgio Sá Leitão em seu discurso-manifesto, artistas, intelectuais e produtores culturais têm o direito de se manifestar sobre o país como melhor imaginarem. Aos gestores públicos cabe cuidar de nossa atividade, para que ela se fortaleça e ressuscite nossos sonhos, como proclama o novo ministro.

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Cacá Diegues é cineasta

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