quinta-feira, 10 de agosto de 2017

A gravidade da situação fiscal | Sergio Lamucci

- Valor Econômico

Problema mais grave é a rigidez dos gastos obrigatórios

A situação das contas públicas segue delicada e preocupante, apesar da bem-vinda mudança na orientação da política econômica ocorrida no ano passado. A dívida pública continua em alta forte, o déficit primário se mantém elevado e há uma chance nada desprezível de o teto de gastos ser rompido em poucos anos. Um dos principais termômetros de solvência do setor público, a dívida bruta subiu de 51,5% do PIB em dezembro de 2013 para 73,1% do PIB em junho deste ano, podendo superar 80% do PIB no fim do ano que vem.

O grande problema é a rigidez das despesas obrigatórias, obstáculo que está longe de ser enfrentado. A possibilidade concreta de que a reforma da Previdência fique apenas para 2019 é a prova mais evidente desse impasse. Sem isso, o projeto que limita o crescimento dos gastos da União terá vida curta.

Os preços dos ativos brasileiros, porém, não apontam a preocupação dos investidores com a situação fiscal. O risco-país medido pelos credit default swaps (CDS, espécie de seguro contra calotes) e o câmbio retratam um cenário de tranquilidade, refletindo ambiente internacional favorável aos países emergentes e a solidez das contas externas brasileiras - o déficit em conta corrente caiu muito, por causa dos superávits comerciais elevados, e as reservas superam US$ 370 bilhões.

O quadro fiscal, porém, está longe de ser tranquilo, e o problema vai muito além da necessidade de mudar ou não a meta de déficit primário deste ano, definida em R$ 139 bilhões para o governo central. A volta de um crescimento mais forte decerto vai ajudar a melhorar o resultado fiscal, mas uma expansão mais forte da atividade deverá ficar para a virada do ano. Além disso, há dúvidas sobre como a receita reagirá mesmo quando a retomada for de fato mais expressiva. Nesse cenário, parece inevitável algum aumento de impostos, apesar de o momento não ser o mais oportuno, dada a fraqueza da atividade econômica, e da resistência à alta de tributos por parcela expressiva da sociedade.

O déficit primário (que exclui gastos com juros) continua alto, e é considerável a possibilidade de o rombo neste ano ficar próximo do registrado em 2016, de R$ 159,5 bilhões. O governo conta com uma dose aparentemente exagerada de receitas extraordinárias neste ano, de R$ 54 bilhões, dos quais uma parte razoável pode não se materializar.

As projeções indicam que o resultado primário só deixará de ser negativo em 2020, quando deverá ficar próximo de zero. No ano passado, o déficit do setor público ficou em 2,5% do PIB, e há a perspectiva de um buraco parecido neste ano. Para estabilizar a relação entre a dívida bruta e o PIB, é necessário um superávit primário na casa de 2% a 3% do PIB, o que dá uma medida do tamanho do desafio fiscal nos próximos anos.

A grande dificuldade, no entanto, é a rigidez dos gastos obrigatórios. O grau de manobra para cortar despesas é limitadíssimo. Nas contas da MCM Consultores, de um total de despesas discricionárias (aquelas sobre as quais o governo tem maior controle) de R$ 246,4 bilhões estimadas para 2018, as que podem ser efetivamente contingenciadas somam um pouco mais de R$ 72 bilhões - as outras se referem a gastos com saúde, educação e o Bolsa Família. Com isso, de um total de despesas de R$ 1,349 trilhão, apenas 5,3% podem ser de fato manejadas.

A reforma da Previdência seria o primeiro e mais importante passo para enfrentar uma despesa obrigatória com grande peso no orçamento e que cresce a um ritmo insustentável. A delação da JBS, contudo, mergulhou o país numa crise política que dificulta a aprovação da medida ainda no governo de Michel Temer.

Adiar a reforma para 2019 terá um custo alto. Nas contas do Credit Suisse, se a proposta original do governo passar no Congresso apenas daqui a dois anos, a economia a ser obtida com as medidas até 2027 ficará em R$ 664 bilhões, bem abaixo dos R$ 921 bilhões que podem ser poupados se a reforma for aprovada neste ano.

Antes da nova crise política, parecia crível o Congresso aprovar em 2017 o projeto substitutivo da comissão especial da Câmara dos Deputados, que promoveu concessões em relação à proposta inicial do governo. Hoje, o mais provável é não passar reforma nenhuma, ou que uma versão muito diluída seja aprovada.

O analista Fabio Klein, da Tendências Consultoria, estima que o teto pode ser rompido entre 2018 e 2019, num cenário sem aprovação da reforma e em que a participação das despesas discricionárias nos gastos totais, hoje de 19%, cai a um ritmo de 1 ponto percentual ao ano. Se houver a aprovação de uma reforma da Previdência equivalente a 60% da proposta original, o teto tenderia a ser estourado entre 2019 e 2020, avalia Klein. Essas simulações deixam clara a necessidade de outras medidas para que o limite de gastos seja respeitado. Será necessário rever a regra de reajuste do salário mínimo, corrigido pela inflação do ano anterior mais a variação do PIB de dois anos antes, além de possivelmente adiar o aumento do funcionalismo previsto para 2018, entre outras medidas.

O principal é enfrentar o mais cedo possível a questão das despesas obrigatórias. "Sem atacar a rigidez desses gastos, é crescente o risco de que a prioridade na agenda do próximo presidente seja alterar a regra do teto", resume o economista Mauro Schneider, da MCM. O limite de despesas vale por 20 anos, com possibilidade de revisão meio do caminho. É possível que seja necessário mexer nas regras antes desse prazo, mas seria ruim ter que alterá-las tão rapidamente. O mecanismo serve como âncora das expectativas fiscais de longo prazo, sem que seja preciso um esforço imediato mais duro.

Hoje, o cenário externo benigno e a solidez das contas externas fazem com que os problemas fiscais fiquem em segundo plano. Uma piora do quadro internacional, contudo, pode levar os investidores a prestar mais atenção à trajetória da dívida bruta, com impactos negativos sobre o risco-país e o câmbio. A queda expressiva dos juros ajudará na dinâmica do endividamento, mas as taxas só se sustentarão em níveis mais baixos se houver a percepção de que o desequilíbrio fiscal de longo prazo será resolvido. A dívida bruta brasileira não só já está num nível mais elevado do que o da média dos emergentes - de 48,6% do PIB, segundo estimativas para este ano do FMI -, como sobe a um ritmo insustentável. Em três anos e meio, já subiu 21,6 pontos percentuais do PIB, para 73,1% do PIB, e vai seguir em alta nos próximos anos, podendo superar 90% do PIB na próxima década. A situação está longe de ser confortável.

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