domingo, 20 de agosto de 2017

Conta de nunca chegar | Fernando Gabeira

- O Globo

Quando cheguei à Argélia para o exílio, o pernambucano Maurílio Ferreira Lima já morava lá. Levou-me para um passeio e passou num açougue para comprar carne. Fez a transação em francês mas, ao sair, disse da porta: “pendura”. Fiquei surpreso com a naturalidade e o sorriso do açougueiro. Maurílio revelou que esta era a única palavra em português que ensinou a ele.

Cada vez que o governo vem anunciar uma nota fiscal, lembro-me de Maurílio. É como se dissessem: “mais R$ 20 bilhões, pendurem”. Maurílio pagava suas contas em dia. Ao contrário do governo, tratava apenas do que comprava, e não de projeções para o ano seguinte. O governo pendurou R$ 20 bilhões em 2107 e anunciou que vai pendurar R$ 30 bilhões em 2018.

Quem vai pagar tanto dinheiro? Eles falam em economia nos gastos públicos. Não acredito. Os dados estão aí: deputados e senadores querem alguns bilhões para financiar suas campanhas.

Se fossem só os políticos, ainda havia uma esperança. A Justiça, que tem sido aliada da sociedade na luta contra a corrupção, é muito reticente quando se discutem os supersalários que excedem o teto legal. Nesta semana, falando com um procurador que atua no Norte do país, ele me passou um quadro desolador. Há promotores que chegam a ganhar R$ 125 mil mensais.

As notícias sobre juízes do Mato Grosso que receberam até R$ 500 mil frequentaram o noticiário e saíram em paz. Um dos juízes chegou a declarar: “não estou nem aí para o espanto que a notícia causou”. Ele não está mesmo. Considera legal receber, e pronto. O próprio Supremo Tribunal Federal sempre tem se manifestado a favor de quem ganha tanto dinheiro com salário e penduricalhos.

Nesse sentido, a orfandade dos brasileiros é total. Os políticos não só desviam dinheiro como inventam fórmulas para receber fortunas através de suas leis eleitorais. E a Justiça não mostra nenhuma sensibilidade para o problema. O que fazer nessas circunstâncias?

Dentro do quadro de apatia que se criou no país, parece que a alternativa é trabalhar e separar o dinheiro do imposto, assim como muitos, em áreas de risco, saem com o dinheiro exato do assalto. Mas é uma tática que tem seus limites. A máquina burocrática brasileira é muito pesada para o país. Ela se comporta como se estivéssemos nadando em dinheiro.

O grande problema da necessária austeridade é o próprio governo. Se ele tem um projeto de reforma da Previdência que implica em sacrifícios para alguns, quem vai apoiá-lo sabendo que não há reciprocidade nos esforços? O resultado disso é a marcha da insensatez que vai nos levando progressivamente ao caos. No momento, falamos em bilhões com tranquilidade, mas já há quem calcule em meio trilhão o rombo nos próximos anos.

Mas toda essa conversa sobre números acaba sendo abstrata. Nas estradas, caiu o policiamento; nas fronteiras, a redução de verbas dificulta a ação das Forças Armadas. Nos hospitais, então, a escassez mata.

Em 2013, a sociedade intuiu que isso estava errado e se manifestou nas ruas, queria serviços decentes para os impostos que paga. Naquele momento, as grandes empresas estavam tranquilas. Se reclamavam dos impostos, a resposta foi simples: ampliar isenções. O BNDES emprestava dinheiro a juros reduzidos, e os próprios políticos ofereciam isenções. De tal forma ofereceram que, no Rio, cabeleireiros, joalherias e até um prostíbulo tornaram-se isentos. A corrupção mostrou como recursos públicos eram drenados. A quebradeira agora vai colocar também em cena algo que não era tão discutido em 2013. Pedia-se um serviço decente em troca do imposto.

Agora, num momento em que cogitam a alta dos impostos, o Brasil merece um grande debate sobre como o bolo dos recursos públicos é dividido.

Por que há tantas isenções e qual o benefício que trazem para o país? Por que uma máquina com tanta gente é tão pouco produtiva? Por que salários tão altos, tantos penduricalhos?

No Congresso participei de inúmeros debates sobre isso, tentando convencer o governo, na época, a reduzir radicalmente as viagens, que custavam em torno de R$ 800 milhões por ano. Já havia os meios para isso: teleconferência, Skype. Hoje foram ampliados com novas alternativas.

O alto custo não é apenas com passagens, mas também com as diárias pagas aos funcionários. Por isso, quando se fala em reduzir custos e aumentar a produtividade, há sempre uma resistência. Apesar de haver gente bem-intencionada entre os funcionários, o ânimo para aumentar a produtividade de serviços públicos deveria vir do universo político.

Do mundo político não virá nada. Foi o próprio sistema político-partidário que criou esse monstro dispendioso. Os políticos, nesse episódio, não são uma solução, e sim uma parte substancial do problema. Se depender eles, o atraso se eterniza. Sempre que apertar, vão dizer: “pendurem”.

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É jornalista

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