sábado, 19 de agosto de 2017

Um monólogo infinito | Ana Maria Machado

- O Globo

Basta um passeio pelas redes sociais para que constatemos como tecido cultural corre o risco de se esgarçar

Há poucos dias, no Teatro Municipal de Niterói, assisti a uma alentadora cerimônia de entrega dos prêmios Zilka Salaberry de Teatro Infantil. Um caso de resistência cultural. Incluía ainda bela homenagem ao centenário de Dalva de Oliveira. Na mesma ocasião e nas conversas entre os artistas da plateia, manifestaram-se outros exemplos da força desses criadores que resistem. Como a da Escola de Teatro Martins Pena, tão cara a meu coração desde que lá dei aulas de dramaturgia na gestão de Klaus Viana, e onde agora os professores resistem e se mantêm trabalhando mesmo sem receber seus salários, com heroica dedicação, capaz de ir muito além dos limites imagináveis. Alguns artistas agradecem a empresas privadas, como a Oi, que vem conseguindo manter alguns casos de apoio. Outros relembram tempos em que a dependência de patrocínios e da mão governamental não era tão acentuada como hoje, possibilitando viver de bilheteria — mas sem meia-entrada, e com plateias fieis que não tinham medo da violência urbana e saíam à noite em uma cidade amigável, para festejar e assistir às peças com amigos.

Essa lembrança também é evocada em entrevista de Fernanda Montenegro, a propósito do lançamento de sua correspondência com Paulo Autran, rememorando que as companhias teatrais há algum tempo podiam ser permanentes, com grandes elencos e longas temporadas de espetáculos quase diários, sustentadas por uma adesão fiel do público que se sabia parte fundamental do processo.

Isso faz pensar em algo muito importante que deve nutrir, irrigar e sustentar uma nação, e de que atualmente parecemos estar nos afastando. Um resultado fundamental do papel que deve desempenhar a cultura no fortalecimento da identificação coletiva que enraíza uma sociedade. A noção de pertencimento.

Essa consciência não significa que cada um deva se sentir como sendo propriedade de um território, nem súdito de um governo ou partido que seria nosso dono. Tem a ver com a soma de nossos afetos coletivos e crenças. Refere-se ao compartilhamento de valores simbólicos, num leque muito amplo e variado, que engloba a língua comum, a memória compartilhada e o senso de humor que permite rir das mesmas coisas. Pode partir dos ecos de “minha terra tem palmeiras” e chegar ao arrepio de distinguir no estrangeiro os acordes iniciais de “Aquarela do Brasil”, sabendo que aquele som fala por nossa alma — como acaba de se reiterar com a homenagem prestada a Neymar há poucos dias pelos torcedores do PSG no estádio. De tudo isso somos feitos. Para cantar ou chorar. Para nos reconhecermos.

No entanto, basta um passeio pelas redes sociais para que constatemos como esse tecido cultural corre o risco de se esgarçar. Por vezes, já está bastante puído, laceado e se rasgando. Esse perigo está diretamente ligado às atitudes agressivas geradas por ressentimentos, patrulhamentos, cobranças, limitações da palavra alheia, boicotes a escolhas e premiações, banimento de termos que não seriam exatamente os escolhidos por determinado grupo, imposições do politicamente correto, acusações de apropriação cultural e outras diferentes formas de censura disfarçada, que se outorgam o direito de cercear a palavra alheia. Um direito que não pode ser reconhecido e legitimado, mas que sistematicamente e de modo organizado tem se valido de poderosas formas de intimidação para se impor.

Seria cômico se não fosse trágico: nos últimos dias pululam, nos debates entre internautas, ataques raivosos a dois músicos setentões que sempre foram motivo de orgulho para a cultura brasileira. Andam acusando Ney Matogrosso de homofóbico, por uma exclamação dada em meio a uma entrevista. Denunciam Chico Buarque como machista, porque, em uma de suas letras recentes, para uma música de Cristóvão Bastos, o personagem do homem apaixonado se dispõe a largar mulher e filhos pela amada. É um poema em que pares de ecos sutis (como suspiro/ligeiro, nome/perfume, lenço/alcanço, nega/cantiga) são jogados na lata de lixo por ouvintes que nem ouviram, e se revelam mais interessados em combater do que acolher. É uma tristeza desperdiçar linguagem poética dessa qualidade e trocá-la por slogans carrancudos e retórica sem imaginação.

Cada um pode perceber ou não. Gostar ou não. Relevar ou discordar. Mas partir para a agressão é sintoma da lamentável patologia social que anda fazendo muito mal ao Brasil e aos brasileiros. Sem um mínimo de aceitação do outro para construir um entendimento, não seremos capazes de sonhar um projeto comum para o futuro. Sob o domínio da censura cultural e da restrição de determinadas palavras e de pontos de vista, fica difícil ir adiante. Assim, vamos ficar muito tempo feito barata tonta, andando sem rumo.

Queremos pertencer ao mesmo país? Ou tratar de impor agressivamente uma pauta única e uma linguagem excludente? Desse jeito, logo chegaremos ao que por vezes parece ser a tônica de nossos dias de intolerância — a apoteose de um infinito monólogo. Uma chatice sem fim.
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Ana Maria Machado é escritora

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