sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Uma falsa proposta de modernização | Fernando Abrucio

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Mais uma vez a história se repete como farsa no Brasil: o parlamentarismo aparece como solução mágica para resolver os problemas do sistema político. Já vimos esse filme antes, em 1961, e o resultado foi aumentar a instabilidade. Naquela época, os proponentes eram políticos e militares com medo da posse de Jango, tratado como comunista em meio ao clima da Guerra Fria. Ironicamente, agora é o ex-vice Temer que propõe a adoção do novo sistema, ou pelo menos, como diz ele, de algo similar aos modelos português e francês. Ao dizer isso, parece que o nosso atual presidente está querendo modernizar o Brasil, copiando os países desenvolvidos. Mas, por trás disso, há o desejo de manter o status quo, fingindo ser reformista.

A briga sobre o melhor sistema de governo, tomando como meramente dicotômica a relação entre presidencialismo e parlamentarismo, já não é vista por muitos estudiosos como verdadeira. Em termos empíricos, há muitas variações no funcionamento de cada sistema. Além disso, há outros elementos institucionais que afetam o desempenho político dos países: regras eleitorais, formas de organização partidária, mecanismos de "accountability" entre os Poderes, organização territorial do poder, relacionamento entre políticos e burocratas, procedimentos orçamentários-financeiros, para ficar nos principais. A crença de que basta optar pelo modelo parlamentarista e assim tudo dará certo, não tem base nas evidências científicas.

Colocar os casos francês e português no mesmo bloco institucional parlamentarista, ademais, parece-me, no mínimo, um erro conceitual. São duas experiências conhecidas mais como sistemas semipresidencialistas, mantendo várias das características de separação de Poderes que caracterizam o presidencialismo. Alguns estudiosos elogiam esse modelo, outros acreditam que ele possa conter os problemas de ambas as formas institucionais. Os momentos de coabitação na França, quando o presidente não tem maioria na Assembleia, são geralmente conturbados e difíceis.

Isso não quer dizer que o parlamentarismo seja em si ruim. Algumas de suas variações têm tido bons resultados em determinados países. Eu mesmo votei nele no Plebiscito de 1993, quando venceu o presidencialismo, e creio que o melhor legado daquele processo foi tornar mais complexo o debate institucionalista no país. Hoje é possível afirmar, com base nas pesquisas comparadas, que esse sistema pode contabilizar bons e maus momentos.

A instabilidade da experiência italiana retrata bem isso, do mesmo modo que o parlamentarismo não é uma panaceia universal para todos os males. Seguindo a mesma lógica, ao contrário do que diziam os líderes que defenderam a opção presidencialista, esse sistema não é garantia, em si, de maior sucesso na representação do povo. Afinal, Trump está aí para provar o contrário, ganhando a eleição tendo menos votos populares do que sua concorrente.

Mas o ponto central é que não há uma escolha evolutiva sobre o melhor sistema de governo. Isto é, dizer que a adoção do parlamentarismo torna um país mais desenvolvido institucionalmente é um argumento sem amparo científico. Acima de tudo porque as construções institucionais têm a ver com a trajetória dos países, com a combinação de suas instituições, com opções valorativas sobre as formas de representação política - um modelo mais proporcional ou mais majoritário - e, especialmente, com o diagnóstico específico sobre a situação política de cada nação.

Antes de optarmos por uma falsa solução institucional, é necessário conhecer porque escolhemos tal caminho. Alguns de seus defensores atuais têm dito que o parlamentarismo seria uma saída para os problemas do presidencialismo de coalizão. O primeiro temor que advém desse diagnóstico é acreditar que seja possível montar um governo, num país multipartidário como o Brasil, sem construir coalizões.

É inegável que há problemas no sistema político brasileiro atual, mas parte das críticas deriva de uma visão antipolítica. Qualquer aliança é vista como espúria. Deseja-se um governo forte, o que resultaria num Legislativo mais fraco.

Se isso acontecer, será difícil corrigir os erros ou descaminhos dos governantes, quando parcela substantiva de nossa crise deriva, ao contrário, da falta de fiscalização e "accountability" dos principais ocupantes dos cargos públicos. Coalizões, como qualquer divisão de poder, podem trazer dificuldades à governabilidade, mas sistemas que não têm qualquer princípio dessa natureza podem caminhar para alguma espécie de autoritarismo.

As coalizões podem ser criticadas porque elas são expressão de um multipartidarismo exagerado. Não há dúvida que o número de partidos relevantes no Congresso Nacional brasileiro extrapolou o bom senso, da mesma maneira que as regras de concessão de recursos públicos às legendas permitem uma proliferação de agremiações que só vivem para vender (às vezes literalmente) apoio. Porém, o remédio, como ensinavam os alquimistas medievais, pode virar veneno.

Talvez alguns prefiram o bipartidarismo, tal como vigorou na ditadura, ou, para mantermos o anseio pelo parlamentarismo, no Segundo Reinado, visto por alguns como um período de grande estabilidade. Esquecem de dizer que fórmulas como essa só geraram exclusão política e social no Brasil. Dadas suas várias heterogeneidades, sociais, culturais e de autonomia política local, é melhor para o país ter algum modelo mais proporcionalista, embora não necessariamente com alguns vícios daquele que vigora hoje.

O presidente Temer encontrou um argumento diferente para apoiar uma solução de viés parlamentarista: é preciso que Executivo e Legislativo trabalhem em harmonia, e não em guerra ou com o domínio de um sobre o outro. O presidencialismo à brasileira atiçaria, neste sentido, essas duas coisas a evitar. Vale a pena citar o seu raciocínio na integra:

"Você sabe que eu tenho muita simpatia pelo parlamentarismo, não é? Eu acho que o Brasil pode caminhar para isso. Veja: de alguma maneira, nós estamos fazendo quase um pré-exercício de parlamentarismo", disse o presidente ao Valor. "Vocês sabem que eu fui três vezes presidente da Câmara. O Legislativo era uma espécie de apêndice do Executivo. No meu governo, não. É parceiro do Executivo. E temos trabalhado juntos, o Executivo e o Legislativo".

A argumentação de Temer, em meio a uma crise que dura pelo menos três anos, é sedutor para muita gente. O parlamentarismo consagraria a forma que o presidente encontrou de gerar harmonia entre os Poderes e, digamos assim, trabalhar para o bem do país. Mas essa construção só foi possível, no atual momento histórico, porque boa parcela dos parlamentares e o próprio Temer fizeram um pacto para se proteger de denúncias da Justiça. Mais do que isso: o grupo dominante no governismo tende a tomar decisões, como a reforma política de plantão, que buscam estabelecer regras para dificultar a renovação política congressual.

Portanto, em vez de ser um instrumento para mudança, o parlamentarismo da era Temer serve para manter os interesses da classe política, em especial a chamada base governista, ancorada hoje principalmente no PMDB e no "Centrão". Eles são a cara daquilo que Temer está chamando de "pré-exercício de parlamentarismo". Ou seja, nada parecido com o requinte e o charme da experiência britânica, nem com a combinação de eficiência e "accountability" do modelo alemão.

Se o país quer atacar os males do presidencialismo de coalizão, precisa atuar sobre os seus verdadeiros problemas. Um dos maiores é sem dúvida o modelo de "spoil system" que vigora na administração pública, a partir do qual parlamentares governistas podem indicar e ajudar a escolher, sem exagero, milhares de cargos, sem que princípios de mérito e transparência comandem tal processo.

Essa prática, aliás, seria insustentável no parlamentarismo, que supõe um modelo de Estado mais estável, dado que possíveis trocas de coalizão dominante levariam a uma enorme instabilidade na alocação dos principais postos públicos. Será que os querem optar pelo parlamentarismo gostariam de perder o poder patrimonialistas de ocupar ou distribuir postos no governo federal?

Lembrem-se, caros leitores: a harmonia entre os Poderes no governo Temer foi alcançada basicamente loteando grande parte do Estado brasileiro, fortalecendo o deputado com esse instrumento, e dando poder de barganha ao presidente para evitar qualquer surpresa no Congresso. Assim, ambos os lados ficaram felizes, embora isso não tenha melhorado a qualidade das políticas públicas.

Reformar o presidencialismo brasileiro passa por enfrentar esse modelo de relacionamento entre política e burocracia. Isso pode ser feito dentro do próprio presidencialismo, junto com outras reformulações institucionais. Mas os aliados do presidente estão mais preocupados em criar novas regras eleitorais que aumentem a barreira de entrada a novos grupos e pessoas. E se for possível, alçar pessoas ao poder maior sem que elas passem por eleições presidenciais. O parlamentarismo proposto é para brasileiro ver e achar que virou inglês.
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Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e coordenador do curso de administração pública da FGV-SP

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