quinta-feira, 28 de setembro de 2017

A carta de Palocci | Marco Aurélio Nogueira

- O Estado de S. Paulo

Será difícil, daqui há muitos anos, quando a história dos nossos dias for escarafunchada e contada de forma adequada, rigorosa, que o dia 26 de setembro de 2017 não seja validado como ponto de referência.

Foi nessa data que o ex-ministro Antonio Palocci se desfiliou do PT e enviou, à presidente do partido, uma carta-exocet, um míssil que fez tremer mesas, paredes, tribunas, conversas de bar e cálculos racionais. Não tinha havido, até então, algo tão contundente e vigoroso, tão desbragadamente disposto a expor o mar de lama que invadiu o campo petista e particularmente a biografia de Lula.

Já foram ditas muitas coisas contra Lula e o PT. Parte delas vieram pelos antipetistas de carteirinha, sempre dispostos a fazer tempestades em copo d’água quando se trata de desancar a esquerda, a inventar alguns fatos e a exagerar outros para prejudicar Lula e o PT. Em vez de travar a boa luta de ideias, essa ala militante segue a trilha da denúncia, pouco importando se se vale, em alguns momentos, de condutas bem próximas do fascismo.

Mas também há coisas que já foram ditas sobre Lula e o PT que aos poucos têm sido comprovadas, principalmente pela lógica das narrativas mais do que por “provas materiais”. Nenhum brasileiro razoavelmente informado ignora do que se trata: em poucas palavras, uso do Estado e do poder político para finalidades escusas, regra geral associadas a dinheiro. Houve um pouco de tudo nesse universo. Favorecimento de empresas e pessoas, financiamento eleitoral, protecionismo familiar, enriquecimento pessoal, articulações políticas perniciosas que beneficiaram um mundão de gente, desperdício de recursos públicos. Pode-se dizer que tais práticas são usuais na vida nacional, que “todos” delas se valeram, que o montante elevado ligados aos fatos recentes (bilhões de reais) deve-se tão somente a uma espécie de evolução natural da força do dinheiro, do custo das operações. Mas não há como simplesmente ignorá-las, dizer que não existem.

É um exagero dizer que nos anos do PT no poder montou-se a “mais formidável organização criminosa” da história brasileira. Não há como demonstrar isso. Mas há como dizer que nunca a corrupção ocupou posição tão central na política e na vida do Brasil. Também não há como dissociar esse fato de Lula e do PT. Não porque tenham sido eles os campeões da ilicitude, mas simplesmente porque ocuparam o poder, usaram o poder e, com isso, ficaram na berlinda: tornaram-se o adversário que todos queriam derrotar.

É um quadro simples de ser visualizado. Um partido popular chega ao poder depois de trafegar pelas margens do sistema durante anos. Passa a acumular mais poder, impulsionado pela força e pelo talento de sua maior liderança. Faz alianças com o fisiologismo reinante, pois precisa de votos no Congresso e de apoio nas eleições. Precisa de dinheiro para se financiar e alimentar a gigantesca máquina que vai sendo levado a organizar. A cada eleição, o preço sobe. O partido vai assim deslocando para fora de si a elaboração teórica e programática, acabando por ter de se sustentar cada vez mais por acordos e contatos espúrios, que corroem sua identidade de esquerda e minam sua legitimidade reformadora. Quanto mais cresce, mais passa a depender desses arranjos. Lula vai ao limite. Não tem com quem dividir as múltiplas tarefas. Cerca-se de assessores e auxiliares. Com o tempo, a cúpula do partido já não mais tem autonomia, não responde às bases, e vai vendo, um a um, seus capitães serem denunciados e presos.

Palocci foi um deles, um dos grandes e poderosos generais que reinaram nos anos de ouro do petismo no poder. Aos poucos, pelo que se pode especular, perdeu as ilusões, foi preso e resolveu parar de se sacrificar por uma causa que esmaeceu e perdeu sentido. O silêncio não mais lhe interessava. Negociou uma delação para tentar reduzir a pena. Nisso, foi lançado contra o muro de explicações e justificativas do PT, trombando também com a cultura petista e de parte importante da esquerda, passando a ser tratado como traidor, mentiroso, um reles inventor de histórias preocupado exclusivamente em salvar a própria pele.

Podemos achar o que quisermos do gesto e da trajetória recente de Antonio Palocci. Podemos, se assim for, chamá-lo de fraco, oportunista e traidor. Mas não temos o direito de achar que ele simplesmente mente e inventa coisas. Ao fazer o que está fazendo, também sofre, se quisermos olhar as coisas por esse ângulo. Ninguém passa em revista a própria biografia e se expõe sem experimentar alguma dor. Talvez seja esse o preço que se paga para amadurecer e expiar os próprios demônios.

O que Palocci relata tem sido repetido em vários outros depoimentos, vem sendo rastreado por investigações, faz sentido. A lógica narrativa precisa ser considerada com atenção, pois é com base nela que poderemos entender a lógica da corrupção que nos assola.

Particularmente a esquerda deveria aprender algo com a carta de Palocci. Ela funciona como uma espécie de Relatório Kruschev sobre o culto à personalidade no interior do PCUS, documento que criou um antes e um depois no universo dos partidos comunistas do mundo inteiro, na metade dos anos 1950. Muitos comunistas daqueles anos não acreditaram, passaram mal ao lê-la, acharam que nada mais era que a mão do imperialismo em ação. Quando as fichas caíram e a verdade veio à tona, o alvoroço foi completo. Serviu para que alguns partidos buscassem passar as coisas a limpo e caminhassem para a autorrenovação, mas também foi tratada com indiferença por outros, que continuaram na mesma toada até baterem de frente com o Muro de Berlim em 1989.

Hic rhodus hic salta! É a hora da verdade para o PT, hora de mostrar que pretende escapar do abismo e ter futuro. Recuperar o tempo perdido é o único modo de recuperar a imagem que se deixou abalar com o passar dos anos., PCUS, partidos comunistas, delação
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Marco Aurélio Nogueira é professor titular de Teoria Política da Unesp

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