sexta-feira, 29 de setembro de 2017

A desigualdade oculta | José de Souza Martins

- Valor Econômico / Eu &Fim de Semana

De que desigualdade se trata quando as estatísticas nos dizem que os ricos estão mais ricos, e os pobres, imobilizados na mesma pobreza? Ricos de que e pobres de quê? É claro que é esse um sinal de que a sociedade brasileira vai mal. Mas onde está o conteúdo social dessa diferença? Milhões de brasileiros estão fora das estatísticas, tanto os muito pobres quanto os muito ricos. Pouco sabemos sobre a economia clandestina dos pobres e a economia oculta dos ricos. As revelações da corrupção política apontam milhões de reais circulando por fora da rede e dos meios fiscais de vigilância da decência econômica.

As diferentes teorias do desenvolvimento capitalista nos dizem que é da natureza dos ricos ficarem mais ricos. Se não o fazem, estão traindo a missão histórica que lhes cabe, que é a de gestores da produção capitalista da riqueza. Foi Karl Marx quem disse isso no primeiro tomo de "O Capital". Tenho notícia de um único grande empresário brasileiro que foi leitor de Marx: Roberto Cochrane Simonsen, um dos fundadores da Fiesp. O parceiro de Marx, aliás, foi um industrial têxtil, Frederick Engels.

O capitalista tem a responsabilidade social de administrar o capital que lhe está nas mãos como bem privado, mas que é, de fato, um bem público pelas funções sociais que tem. Ele é um funcionário de seu próprio capital, e não um patrão de si mesmo. Fracassa quando é mau empregado. Essa impessoalidade foi analisada por Max Weber em seu clássico estudo sociológico sobre "A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo".

Capitalista que não acumula capital é o que vai a caminho da falência. Como é um traidor de sua classe social o capitalista que acumula por meio da corrupção. O fracasso do capitalista é o fracasso do sistema que lhe define a vocação, o chamamento para fazer o sistema funcionar. Se ele não ficar cada vez mais rico, não atuará empresarialmente para criar emprego para trabalho e remuneração dos mais pobres, para integrá-los na sociedade de consumo, para fazê-los sujeitos da sociedade baseada na premissa contraditória de que é uma sociedade de pessoas juridicamente iguais e economicamente desiguais.

É esse o fundamento da crítica social que faz da sociedade capitalista tema e referência dos julgamentos morais. Julgamentos que dizem alguma coisa que não pode ser ignorada por aqueles que tem a responsabilidade de assegurar o equilíbrio das relações sociais e aquilo que se chama de justiça social.

Distribuição desigual não é apenas distribuição desigual da riqueza, mas sobretudo distribuição desigual da consciência social e dos meios culturais que permitem a todos compreender as iniquidades constitutivas do sistema e a possibilidade da sua correção.

Para discutir as desigualdades sociais e a injusta distribuição da renda é preciso ir muito adiante das estatísticas que nos dizem que os ricos ganham cada vez mais e os pobres ganham o mesmo que ganhavam ou ganham menos. É necessário fazer a listagem das iniquidades que respondem pela involução social na evolução econômica. E isso não estamos fazendo. Não estamos fazendo a crítica social e política do pseudoneoliberalismo que manda a conta dos riscos da acumulação da riqueza aos desvalidos, aos aposentados, às futuras gerações, aos pobres de meios para se defenderem da prepotência dos que tudo podem e nada percebem. E não aos corruptos, aos inescrupulosos, ao Estado voraz de tributos e mesquinho nas retribuições pelos tributos que recebe.

Desigualdade não é só nem principalmente desigualdade de rendimentos. Desigualdade é, também, desigualdade de percepção, compreensão e consciência das consequências sociais dos ganhos desiguais e injustos, das privações que daí decorrem. As desigualdades são socialmente constitutivas desta sociedade unicamente enquanto os desiguais a aceitam e legitimam. Enquanto as vítimas com elas se conformam na esperança de que nela ainda haja um lugar para si, seus filhos e netos.

Porém, quando surge a consciência de que a desigualdade é expressão de uma iniquidade sem saída, essa legitimidade desaparece. Estamos vivendo o momento perigoso desse limiar do abismo. São tantos os indícios de revolta e indisciplina contra as desigualdades sociais, em face da impunidade dos agentes da corrupção que as acentua, um crime de lesa-pátria, da serenidade dos que nos tratam como idiotas culturais, na indiferença ante nossa indignação, que não há como negar que ultrapassamos a fronteira da reprodução serena do capitalismo subdesenvolvido que é o nosso. É a difundida consciência de que talvez já não tenhamos presente e que o futuro está ameaçado pela irresponsabilidade e insensibilidade dos que nos iludem e nos enganam.
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José de Souza Martins é sociólogo, membro da Academia Paulista de Letras e autor de “Uma Sociologia da Vida Cotidiana” (Contexto), dentre outros.

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