sexta-feira, 22 de setembro de 2017

Brasil precisa de muitas vozes para ser governado | Fernando Abrucio

- Valor Econômico / Eu &Fim de Semana

O Brasil atual não tem tido muito lugar para visões mais matizadas e equilibradas. O radicalismo dos meios e dos fins está ganhando força, sob a crença de que há uma resposta única e pura para resolver os problemas. O perigo desse caminho é imaginar que as soluções podem ser construídas sem o diálogo entre os diferentes, sem experimentação e aprendizado - o que supõe o erro e a dúvida. O fato é que a demarcação completa dos terrenos entre as principais forças políticas e sociais pode trazer prejuízos para o próximo presidente, que precisará enfrentar múltiplas agendas e combinar ideários políticos se quiser dar conta da nossa complexidade.

Vale começar desde já esse debate para tentar evitar que a disputa presidencial repita o cenário atual. Hoje, o governo relega diversas agendas a um segundo plano, como a do meio ambiente e dos direitos humanos; e do lado contrário, a oposição ignora que sem alguma reforma da Previdência Social será muito difícil ampliar as políticas sociais no próximo mandato. No plano da sociedade, grupos ditos liberais - embora estejam mais para o conservadorismo autoritário - se mobilizam para proibir exposições em museus, praticando a censura contra a liberdade de expressão. Isso é o oposto do que propugnavam os grandes pensadores do liberalismo, como Stuart Mill ou Isaiah Berlin.

A radicalização tem dificultado ir além de palavras de ordem e da lógica "amigos versus inimigos". Desse modo, as principais lideranças do país, algumas delas já em plena campanha presidencial, soltam slogans que contêm ideias prontas e acabadas, ao mesmo tempo em que procuram identificar os vícios do oponente. "Ele é um petista!", brada um, gritando depois um conjunto de impropérios que vão do comunista ao corrupto. "Estão querendo implantar o neoliberalismo no país!", grita outro, mostrando como o governo e os candidatos da direita só se preocupam com as contas públicas e não com o povo brasileiro.

As possibilidades de solução para as políticas públicas vão muito além dessas concepções extremas. Mais do que isso, elas dependem de uma combinação de meios e fins que se nutrem de diversos ideários políticos, de fórmulas adotadas por governos de partidos diferentes. A boa política não está num lugar só. Ela está em vários e depende de múltiplas vozes, num processo em que os governos - e as sociedades - precisam estar dispostos a aprender com a experiência.

Em um contexto de tanto radicalismo e pessimismo em relação ao futuro do país, veio em boa hora o novo livro de Renato Janine Ribeiro, "A Boa Política" (Companhia das Letras). O próprio título é estranho ao Brasil atual: poucos brasileiros demonstram ter fé na política, em razão do "big bang" ético ocorrido desde 2013 para cá. Os vários escândalos revelaram fissuras em todos os principais partidos. Diferentemente do impeachment de Collor, quando o sistema político esteve aliado com as ruas, hoje há um descompasso imenso no campo da representação. Nessas horas, o temor está nas opções pretensamente antipolíticas, como os salvadores da pátria e os defensores da volta do regime militar. Não seremos salvos por nada que se coloque como absoluto, pois isso é uma visão infantilizada do jogo político. Somente uma combinação de forças políticas, apresentando seus projetos e negociando as decisões públicas, poderá nos levar a uma saída madura.

Mas que combinações de ideários, forças políticas e agendas poderão ser construídas para a eleição presidencial? Renato Janine apresenta, primeiramente, a necessidade de combinar os desígnios da democracia com os da república. A primeira dando vazão às demandas dos vários grupos sociais. É muito importante que todos se expressem em praça pública, que visões e interesses não fiquem escondidos, não sejam objeto de conversa sorrateira a altas horas da noite. Claro que é fundamental democratizar a democracia no Brasil, permitindo que os setores menos organizados e excluídos possam atuar e garantir seus direitos.

A lógica dos direitos e da luta por eles é essencial, porém, também é necessário ter uma republicanização da vida pública brasileira. Ao contrário do que se pensa, isso vai muito além da questão da corrupção, embora esse senso seja chave para despatrimonializar o Estado e a política brasileira. É preciso desenvolver, em políticos e atores sociais relevantes, a noção de interesse público, que é a capacidade de ir além dos desejos e interesses imediatos dos indivíduos ou grupos. A coisa pública supõe uma sociedade e, sobretudo, lideranças capazes de defender causas com efeitos amplos, inclusive intergeracionais, que não respondam às demandas imediatas de cada qual.

Nessa mesma linha, Renato Janine propõe outra combinação aparentemente inusitada para o espírito radical de nossa época: um encontro de ideias do liberalismo com as do socialismo. Mesmo tendo acabado a Guerra Fria, pensar desse modo ainda é visto de forma bastante preconceituosa. Afinal, para um lado, o socialismo é o fracasso do regime soviético e afins, enquanto para o outro lado, o liberalismo é a defesa dos interesses dos mais ricos, a vitória do mercado contra a igualdade.

A visão predominante não é de todo falsa, porque muita coisa que veio de cada escola de pensamento deu efetivamente errado. Contudo, é interessante notar que foram as lutas dos partidos de origem socialista ou de esquerda na Europa e mesmo nos EUA de Franklin Roosevelt que tornaram civilizado o capitalismo no século XX. Da perspectiva inversa, os governos e partidos esquerdistas só se tornaram efetivamente democráticos quando, mesmo sem admitir, incorporaram um quantum de liberalismo em seu DNA, como mostrou Norberto Bobbio.

A peça-chave de ambos, no entanto, é inversa. Enquanto o liberalismo defende a igualdade no ponto de partida - o véu da ignorância de John Rawls -, o socialismo defende a igualdade no ponto de chegada - o combate à desigualdade, por exemplo, não pode ignorar que alguns não vencem no jogo de mercado. Como conciliar duas visões antagônicas? Não creio que Renato Janine queira simplesmente acabar com as tensões entre os dois modos de pensar, mas ele imagina que se possa, de acordo com cada situação histórica e o que ela demanda de soluções, encontrar formas híbridas de convivência entre cooperação e competição, entre meritocracia e inclusão.

Basta pensarmos em um exemplo hipotético, sorteando aleatoriamente um país. Por exemplo, o Brasil. Nele, há questões vinculadas à igualdade do ponto de partida que são essenciais, como o caso da educação. Sem um modelo educacional de qualidade e para todos, o discurso da meritocracia é uma balela. Também há situações nas quais já não há como voltar às origens para corrigir as desigualdades. O Benefício de Prestação Continuada (BPC) não pode ser radicalmente mudado pela reforma previdenciária, porque seus possíveis beneficiários são os mais excluídos e não têm mais como mudar sua trajetória de forma competitiva. Ainda na lógica da combinação de ideias do liberalismo com algumas do socialismo, nosso Estado precisa hoje, ao mesmo tempo, aumentar a competição nos setores econômicos e impulsionar a cooperação em outras esferas sociais. Falta-nos, por vezes, mais capitalismo, e noutras, mais indignação socialista frente às nossas disparidades sociais.

Numa forma mais clara de aterrissar essa proposta de combinação de ideários, Renato Janine argumenta que quatro pautas têm dominado a agenda pública brasileira desde o fim do regime militar. A primeira foi a da construção da democracia, com um papel muito importante do MDB, ao qual se somaram outras forças sociais. A segunda agenda foi a da estabilidade econômica, representada pelo sucesso do Plano Real contra a inflação, num projeto comandado pelo PSDB e pelo presidente Fernando Henrique Cardoso. A temática dominante seguinte foi a da inclusão social, iniciada desde a aprovação da Constituição de 1988 e ao longo da década de 1990, mas aprofundada ao longo do período petista, e cuja liderança foi do presidente Lula. Desde 2013, segundo Renato Janine, uma nova questão ganhou centralidade: a qualidade dos serviços públicos, ou dito de uma maneira mais ampla para abarcar os efeitos da Lava-Jato e afins, a efetividade do Estado em garantir os direitos dos cidadãos por meio de uma gestão pública eficiente, efetiva e transparente.

Responder a todas essas agendas constitui um enorme desafio e vai exigir a combinação de ideias, atores e vozes diferentes. A visão econômica será essencial para sairmos da crise, mas não será suficiente. É preciso ter sensibilidade e tecnologia para a questão social, mas isso só não basta. O caminho da democratização e republicanização do país é peça-chave, mas ainda faltará uma coisa. Temos de nos despir dos preconceitos, das visões simplistas, do extremismo antiliberal (o fanatismo, como diria Amós Oz) para entendermos que o Brasil é um caleidoscópio, exigindo muitas lentes para ser compreendido e para melhorar as políticas públicas. Isso exige uma Boa Política. E a Boa Política é sempre plural.
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Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e coordenador do curso de administração pública da FGV-SP,

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