quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Liberdade, liberdade | Monica De Bolle

- O Estado de S.Paulo

“Liberdade! Liberdade! Abra as asas sobre nós. E que a voz da igualdade seja sempre a nossa voz.
Samba-enredo da Imperatriz Leopoldinense, 1989

O xingamento mais divertido que recebi foi há alguns anos, após ter traduzido a obra de Thomas Piketty, O Capital no Século XXI. Alguns autoproclamados liberais, revoltados com a audácia de transpor para o português aquela que era considerada a obra de economia mais importante de 2013 e 2014, escrita por economista “de esquerda”, resolveram me chamar de “aquela tradutora do Piketty”. Imagino que sejam os mesmos liberais que hoje defendem a censura em nome “da ordem e dos bons costumes”, aqueles ameaçados por obras de arte – pouco importa a suposta qualidade de tais obras. Liberais que defendem a censura por terem tido suas sensibilidades ofendidas são contradição em termos. Liberais que agora gostam de Piketty pelo seu mais recente estudo sobre o Brasil são engraçados.

Thomas Piketty voltou às manchetes brasileiras depois que recente trabalho seu revelou a falácia do mito da queda da desigualdade no Brasil. Hoje, aqueles que atacaram o autor e sua obra por considerá-los demasiado “esquerdistas” o exaltam por desvelar mitologias do lulopetismo. No Brasil, persiste a ideia no debate econômico de que linhas de pensamento correm em paralelo e não podem jamais se cruzar. Mas eis que Piketty apresentou fatos e dados que condizem com o que muitos imaginavam e que, além disso, servem para alimentar a retórica política de um grupo de sociedade.

Traduzi a obra O Capital no Século XXI, do francês, por considerá-la profundamente atual, além de refletir bem a realidade do mundo em que vivemos, extremamente desigual. Tal desigualdade está no cerne dos movimentos nacionalistas e “populistas” – considero o termo “populismo” demasiado desprovido de rigor de caracterização, potente enquanto chavão, porém vazio no conteúdo do significado – que pipocam mundo afora. Piketty tratou o tema da desigualdade com rigor empírico e expôs à profissão a profunda falácia de tê-lo ignorado por tanto tempo – essa é sua principal contribuição. Se as propostas que Piketty sugere para combater a desigualdade deixam a desejar, ele teve o grande mérito de pintar o elefante branco na sala de rosa-choque e de enfeitá-lo com plumas e paetês: ninguém mais pôde ignorar o bicho desde que O Capital no Século XXI foi publicado.

Consideremos os fatos: a desigualdade no Brasil não caiu, pois a parcela mais rica da população brasileira continuou a ver crescimento expressivo de sua renda em ritmo mais elevado do que a parcela mais pobre ganhava poder de compra e empregos. Dito de outro modo, se os programas de transferência de renda iniciados no governo FHC e aumentados no governo Lula beneficiaram parte significativa da população brasileira, ajudando muitos a alcançar o cobiçado status de classe média, os mais ricos no Brasil mais do que preservaram seus privilégios. É esse o grande paradoxo do período iniciado com Lula na Presidência, e que somente terá chance de fim quando Temer a deixá-la. Afinal, não sejamos ingênuos a ponto de imaginar que as políticas de Temer beneficiam as camadas menos favorecidas da população. O fisiologismo do presidente e de seu partido, a corrupção sem freios, o toma lá dá cá tão velho e desgastado são mera continuação do que foi estabelecido como regime no Brasil. As malas abertas pornográficas encontradas em Salvador, jorrando dinheiro das entranhas, que o digam.

O que impede a queda da desigualdade no Brasil? De um lado, algo velho e conhecido: nosso sistema tributário irrefutavelmente regressivo. De outro, políticas públicas que privilegiam setores e grupos de interesse – os campeões nacionais de Lula e Dilma, os congressistas e parcelas do funcionalismo público de que Temer necessita para manter-se no poder. A roupagem muda, mas a engrenagem que mantém alta a desigualdade de renda brasileira está intacta há décadas.

É possível ser liberal de verdade – sem defender a censura – e preocupar-se com a distribuição de renda. É possível ser liberal e acreditar que o Estado tem o dever de reduzir a desigualdade por meios diversos, com programas sociais e medidas para dissolver as barreiras que impedem a ascensão social de muitos. Liberdade, nem que à tardinha. Igualdade sem piadinha.
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* Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University

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